Regresso a casa

Guterres deve manter uma consciência crítica do passado para evitar as tentações da facilidade e do manobrismo num cargo que ele se propõe regenerar.

“Nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz”: foi com esta frase de um dos meus escritores favoritos, Cesare Pavese, que me despedi do PÚBLICO como colunista regular, a 29 de Novembro de 1997, depois de ter sido fundador e primeiro director deste jornal. Uma despedida amarga, dolorosa, que eu então justifiquei com a perspectiva de ver ameaçado, por interferências administrativas, o carácter original do projecto jornalístico mais importante da minha vida. Passaram entretanto quase duas décadas, o PÚBLICO seguiu o seu caminho – ou vários caminhos, afinal – e, apesar de tudo, mantive-lhe a minha fidelidade diária como leitor. Tal como escrevia no final dessa minha despedida, talvez porque “o meu coração continuará a bater por este lugar onde fui feliz”.

Quando David Dinis me convidou a regressar, aceitei logo, com alegria. E quando visitei a redacção, que não frequentava desde esse tempo, vi-me envolvido numa onda de afecto intenso, emocionado, que pude partilhar com aqueles que haviam trabalhado comigo e outros que tinham chegado depois da minha partida. Foi um momento mágico que não esquecerei e que selou o meu reencontro com o PÚBLICO. Este regresso a casa, dou-me agora conta, perseguia-me secretamente como um desejo recalcado.

“Estou sempre a contradizer-me”, confessa uma personagem de Vitória Amarga, o belíssimo filme de Nicholas Ray. É também o meu caso, pelo menos no que se refere ao tal lugar “inabitável”, transformado agora em lugar de reencontro com uma memória feliz.

O que não falta na vida são coincidências. Releio a última crónica que escrevi para o PÚBLICO, há quase vinte anos, e a nota principal refere uma remodelação do Governo de António Guterres, com a saída de António Vitorino e a entrada de Veiga Simão para ministro da Defesa.

Lembrava então: “Veiga Simão é o testemunho da evolução na continuidade entre a ditadura e o regime democrático (…) Com Marcelo (Caetano) fora ministro da Educação, com Soares ministro da Indústria: apesar de tudo eram áreas onde a sua carreira e as suas especializações universitárias justificavam a ocupação dos cargos. Não é isso o que acontece com a Defesa” (…) “Ei-lo, pois, ao leme do barco que sobreviveu à tormenta da guerra colonial, ao estertor do salazarismo e à revolução: a tropa” (…) “Quem disse que a tropa saída do 25 de Abril não podia ser chefiada por alguém que, a 24, estava do outro lado da barricada?”.

Eis um exemplo do manobrismo redondo que, desta e outras vezes, critiquei a Guterres como primeiro-ministro. Isso não impediu, porém, que mantivéssemos, desde que nos conhecemos, uma relação afectuosa e de genuíno respeito mútuo (como porventura nunca tive com nenhum outro chefe de Governo, à excepção de Soares). Agora que, por mérito próprio e comprovado em sucessivas votações, ele se tornou secretário-geral da ONU, será oportuno relembrar que Guterres encontrou no palco internacional e, sobretudo, como alto-comissário para os Refugiados, o lugar mais apropriado à sua vocação humanitária, dialogante e pacificadora. Finalmente, a sua vitória foi também um triunfo porventura inesperado sobre o cinismo e os sórdidos jogos de bastidores da política mundial, neste momento tão crítico de desorientação, barbárie e caos que ameaçam a humanidade.

Mas se Guterres demonstrou ser capaz de se superar a si próprio e à sua experiência doméstica como governante, não será inoportuno, por isso mesmo, que mantenha a consciência crítica do passado para evitar as tentações da facilidade e do manobrismo num cargo que ele se propõe regenerar.

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