A (im)possível reforma das Nações Unidas

A manutenção da estrutura e forma de funcionamento original limita a resposta da ONU à realidade política e aos problemas do século XXI. Daí a particular relevância da reforma da organização.

1. Transparência e reforma são palavras que ficam sempre bem em qualquer discurso político e social. Nas últimas semanas, a transparência emergiu em força, agora ligada às Nações Unidas. O interesse que a eleição do novo Secretário-Geral despertou teve esse efeito. Em língua portuguesa, o nome da vice-presidente da Comissão, Kristalina Georgieva, até se adaptou bem a jogos de palavras irónicos sobre a transparência, ou falta dela, devido à sua candidatura de última hora ao cargo. Foi obscura nas suas motivações e apoios, deixando a União Europeia malvista na opinião pública. Quanto à reforma, qualquer normal cidadão já foi massacrado, vezes sem conta, com o discurso — e algumas medidas avulsas e incoerentes —, da necessidade de reforma do Estado, da reforma da segurança social, da reforma, da justiça, ou da reforma do sistema fiscal. Com a visibilidade súbita que as Nações Unidas adquiriram, também passar a ter outro tema de conversa, improvável há pouco tempo atrás: a reforma das Nações Unidas.

2. Para os neófitos no assunto importa lembrar que o tema já é bastante antigo. Pelo menos desde o final da Guerra-Fria o processo de reforma das Nações Unidas é um clássico da sua agenda e/ou das discussões políticas e académicas à volta da organização. Ao mesmo tempo, é um problema crónico que se arrasta desde os anos 1990, sem resultados palpáveis. É verdade que é particularmente complexo. Envolve alterações à composição e poderes dos membros do Conselho de Segurança, aos poderes da Assembleia Geral, à forma de financiamento através de contribuições dos Estados-membros (quer para o funcionamento normal, quer para as operações de paz), da burocracia e tecnocracia que se desenvolveu na sua órbita, etc. Há coisas óbvias, outras menos óbvias e algumas bastante opacas, que explicam a sua complexidade. A transformação de uma organização criada em 1945 por cinquenta e um Estados — a esmagadora maioria dos quais europeus, ou das Américas —, para uma organização genuinamente global, com cento e noventa e três Estados, é uma das mais óbvias. Mas há outros aspectos a ter em conta, mesmo numa análise breve.

3. As Nações Unidas estão presas a um tratado constitutivo (a Carta de São Francisco), muito dificilmente alterável. Para além da necessidade de uma ampla e espinhosa negociação política, envolvendo múltiplos Estados do mundo com interesses contraditórios, há requisitos legais apertados. Um exemplo esclarecedor. No capítulo XVIII da Carta, referente às emendas, o art.º 108 estabelece que estas só entrarão em vigor “quando forem adoptadas pelos votos de dois terços dos membros da Assembleia Geral e ratificadas, de acordo com os seus respectivos métodos constitucionais, por dois terços dos membros das Nações Unidas, inclusive todos os membros permanentes do Conselho de Segurança". Daqui resulta que qualquer um deles, no limite, pode obstaculizar uma emenda. Com tudo isto, a única alteração substantiva ao texto até agora ocorrida — o aumento da composição dos membros não permanentes do Conselho de Segurança, de seis para dez —, surgiu nos anos 1960. Não foi por acaso. Na altura, a generalidade dos novos Estados independentes, oriundos da descolonização, obteve a maioria necessária de dois terços na Assembleia Geral. O seu interesse convergia, em massa, nesse sentido. As circunstâncias da Guerra-Fria — e a competição entre a União Soviética e os EUA, para os atrair para a sua esfera de influência —, favoreceram a reivindicação e a emenda da Carta nesse ponto específico.

4. As circunstâncias favoráveis para emendas à Carta não se voltaram a repetir. Houve, é certo, um breve período de grande optimismo, associado aos primeiros tempos do pós-Guerra Fria, onde poderiam ter existido, mas não foram aproveitadas. Há uma década atrás, as pretensões da Alemanha, Brasil, Índia e Japão (conhecidos informalmente como P4), em integrarem o Conselho de Segurança fracassaram rotundamente. São um exemplo claro das dificuldades políticas e jurídicas. Embora tivessem o apoio da França e do Reino Unido (os membros europeus do Conselho de Segurança), nunca conseguiram ultrapassar a resistência de outros. Por exemplo, a China opõe-se abertamente à entrada do Japão como membro permanente. Também na Assembleia Geral não conseguiram a necessária maioria de dois terços. Aí as rivalidades regionais associadas às diferentes posições sobre o que deve ser a reforma das Nações Unidas — e, em particular, do Conselho de Segurança —, bloquearam a iniciativa. O Paquistão opõe-se à entrada da Índia; a Argentina e o México entendem o Brasil não é suficientemente representativo do conjunto da América Latina. Quanto à Itália, discorda de um alargamento restrito aos P4 que apenas inclua a Alemanha a nível europeu. Sem surpresa, a União Europeia não tem uma posição política comum sobre este assunto.

5. Pela positiva importa notar que a Carta das Nações Unidas também contém muito de válido para o mundo de hoje. Reflecte um conjunto de ideais nobres para o funcionamento das relações inter-estaduais e a convivência entre seres humanos. São ideais sem os quais a acção política se torna, ainda mais, um mero jogo de poder e de luta dos mais fortes pela supremacia, esmagando princípios e valores. Estão bem vincados no preâmbulo: “Nós, os povos das Nações Unidas, decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; a estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional”. São ainda visíveis no capítulo II, n.º 3, que estabelece quem pode aderir à organização: “a admissão como membro das Nações Unidas fica aberta a todos os outros Estados amantes da paz que aceitarem as obrigações contidas na presente Carta.”

6. Mas a Carta não são apenas ideais. Estes foram combinados, pelos fundadores, com lógicas pragmáticas e realistas de hierarquia de poderes a nível internacional. Há, desde logo, um aspecto histórico que não deixa de ser simbólico, inscrito no nome da organização. Na sua origem, a designação “Nações Unidas” surgiu ligada a um esforço de guerra dos Aliados. Foi usada pela primeira vez em 1942, quando representantes de vinte seis Estados subscreveram a “Declaração das Nações Unidas” contra as potências do Eixo. Para além do simbólico, é inequívoco que representa ainda a ordem criada pelos vencedores da II Guerra Mundial. Mas a manutenção da estrutura e forma de funcionamento original limita a resposta à realidade política e aos problemas do século XXI. Daí a particular relevância da reforma da organização. A grande questão é saber como isso poderá ser feito com tantos interesses que chocam entre si. António Guterres — o futuro Secretário-Geral das Nações Unidas a partir de 2017 —, tem à sua frente tarefas gigantescas, quer no interior da organização, quer no mundo exterior. A guerra da Síria e os refugiados são apenas a ponta mais visível de um mundo cheio de tensões e conflitos. Fazem lembrar os doze trabalhos de Hércules da mitologia clássica. Vai precisar de muito boa sorte, e sem o cinismo de Jean-Claude Juncker a desejar-lha.

Investigador

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