António Guterres e Kristalina Georgieva: o que os separa e os aproxima

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Entre os dois candidatos há mais mundo a separá-los do que a aproximá-los Muhammad Hamed/Reuters

Entre os dois candidatos que concitam mais atenções, António Guterres, o mais votado, e Kristalina Georgieva, a comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos que tirou licença sem vencimento de um mês, há mais mundo a separá-los do que a aproximá-los.

Nas chamadas “declarações de visão” (vision statement) sobre o papel e desafios da organização, as candidaturas mostram essas diferenças. Já nas prioridades da acção das Nações Unidas são mais consensuais.

Guterres, antigo Alto-comissário para os Refugiados da ONU entre 1995 e 2015, aborda, por diversas vezes, a necessidade de “um multilateralismo eficaz”. Como instrumento para enfrentar desafios comuns, gerir responsabilidades partilhadas e exercer a acção colectiva com um objectivo: garantir a paz e um mundo inclusivo e sustentável, baseado no direito internacional e na dignidade do valor da pessoa humana.

O multilateralismo aparece, ainda, na proposta do antigo primeiro-ministro português, como resposta à intolerância, ao extremismo violento e à radicalização. “Para impedi-los, precisamos promover a inclusão, a solidariedade e a coesão das sociedades multiétnicas, multiculturais e multirreligiosas”, diz.

Não é de multiculturalismo que Georgieva fala. “As Nações Unidas e o seu secretário-geral têm a enorme responsabilidade de ajudar a dirigir um mundo no caminho de maior inclusão e de um futuro mais brilhante”, refere. É certo que defende o papel da cooperação, no que parece ser mais recuado do que o “multilateralismo” destacado por António Guterres.

Kristalina Georgieva, uma das duas candidatas búlgaras - a outra é a socialista Irina Bukova, directora-geral da UNESCO que permanece na disputa apesar do governo de Sófia lhe ter retirado o apoio -, defende o envolvimento das organizações regionais e locais na prevenção ao terrorismo, dando como exemplo a associação entre as Nações Unidas e a União Africana. Tal via é, aliás, também defendida por Guterres, sendo, por outro lado, matriz de acção já desenhada nos diversos fóruns da ONU.

O “statement” do português salienta a ligação da paz e segurança, com desenvolvimento sustentável e políticas de direitos humanos, numa abordagem multifacetada para combater o terrorismo.  

Esta articulação não é tão nítida no discurso de Georgieva. Estes elementos constam noutra organização discursiva – o desenvolvimento sustentável na senda da Agenda de Acção de Addis Abeba, fixada em Julho de 2015, relacionada com a cimeira de Paris para as mudanças climáticas, compatibilizando desenvolvimento sustentável com o equilíbrio da actividade económica e consumo.

Guterres refere estas iniciativas da ONU como instrumentos do combate às desigualdades, mas sentencia. “É amplamente reconhecido que não há paz sem desenvolvimento e não há desenvolvimento sem paz; também é verdade que não há paz e desenvolvimento sustentável sem respeito pelos direitos humanos”, afirma.

A candidata oficial búlgara também se refere a esta questão. “Os direitos humanos constituem o terceiro pilar indispensável da actividade das Nações Unidas para além da paz, segurança e desenvolvimento sustentável”, refere. Uma formulação que sugere uma outra articulação, porventura menos ambiciosa e enquadrada. “No mundo de hoje, ninguém pode prosperar se não aproveita o potencial de toda a gente, homens e mulheres”, pondera: “No entanto, nem tudo é cor-de-rosa, a desigualdade crescente, as maiores pressões ambientais, demográficas e de desenvolvimento, e um crescimento mais lento sugerem que se avizinha uma conjuntura económica mais restringida.”

A reflexão do português sobre o mesmo tema: “A globalização e o progresso tecnológico promoveram um crescimento económico extraordinário e criaram condições para a redução sem precedentes da pobreza extrema, mas a sua natureza desequilibrada levou a uma elevada concentração do rendimento, à desigualdade extrema e fez a exclusão mais intolerável”.

São comuns os grandes temas que as Nações Unidas e o futuro secretário-geral têm pela frente, mas difere a sua sistematização. Neste campo, Guterres introduz um conceito, a batalha pelos valores que deve nortear a luta contra o terrorismo. “A comunidade internacional tem o direito legal e o dever moral de agir em conjunto para pôr fim ao terrorismo sob todas as suas formas e manifestações, cometidos por quem, onde, e a qualquer título”, descreve. “Ao fazê-lo, não vamos ceder ao medo nem abdicar dos nossos valores”, acentua.

Kristaliana Georgieva relaciona os objectivos do desenvolvimento sustentável com uma rede de contactos. “Usarei os fortes laços que mantenho com países, organizações regionais e instituições internacionais para exigir uma maior cooperação nesta agenda”, assegura. O que liga ao financiamento. “Um secretário-geral deve pressionar para obter novas fontes de financiamento pública e impulsionar a participação do sector privado a uma maior escala, para tanto será necessário criar novas formas de colaboração e instrumentos políticos e privados que aumentem o nível do investimento e da inovação”, propõe. Na prática, é a transferência para as Nações Unidas, do novo modelo europeu de cooperação que envolve privados.

Guterres é menos concreto, se bem que, como alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, contou com ajuda humanitária de organizações, Estados e associações privadas. Sustenta a reforma e que deve ser prosseguido o caminho que classifica de ajuste fino do sistema de desenvolvimento das Nações Unidas.

Ambos desenham um perfil idêntico do sucessor do sul-coreano Ban ki-moon. “Como diplomata do mundo, o secretário-geral deve ser mais uma função que pessoa, e utilizar o que se conhece como bons ofícios para prevenir e resolver conflitos, trabalhar em contacto estreito com os actores-chave, o Conselho de Segurança, as associações regionais, bem como com todos os membros”, prevê Kristalina Georgieva.

“O secretário-geral deve activamente, de forma consistente e incansável exercer os seus bons ofícios e capacidade como mediador honesto, construtor de pontes e mensageiro da paz”, estipula António Guterres.

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