Quatro homens na estrada

Nada de muito novo a quem conheça a história dos Beatles de trás para a frente, mas a profusão de imagens e sons de arquivo garante ao filme uma dinâmica sempre interessante

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É tanta a quantidade de informação já produzida sobre os Beatles, escrita ou filmada, que a única maneira sensata de lhe acrescentar qualquer coisa sem tombar na irrelevância completa ou no abrégé com sabor a pouco talvez seja mesmo a estratégia seguida por Ron Howard neste filme: isolar um tema com alguma definição, transformá-lo em ponto de vista, e a partir daí explorar, pela enésima vez, a história da banda de John, Paul, George e Ringo.

Temos assim, conforme explica o longuíssimo título original (The Beatles - Eight Days a Week: The Touring Years), um filme que não é sobre os Beatles tout court, mas sobre os anos que passaram na estrada, em actuações ao vivo nos quatro cantos do mundo, até àquele momento de 1966 em que, cansados e frustrados, pararam com isso e passaram a ser, quase exclusivamente, uma banda de estúdio.

É uma escolha temática menos irrelevante do que poderá parecer aos não-iniciados. Foi pelo live que tudo começou, foi pela energia descontrolada e pouco polida das suas actuações na Caverna de Liverpool que Brian Epstein (o manager) se deixou cativar e os trouxe para debaixo da sua asa; e foi pelo desaparecimento da obrigação de reproduzirem as suas canções ao vivo que os Beatles desataram a experimentar todas as maquinetas e formas de produzir sons que um estúdio podia oferecer, "libertação" que está na raiz de quase todas as coisas extraordinárias que geraram do Revolver para a frente.

O enfoque de Howard, sem ignorar isso, concentra-se sobretudo numa dimensão mais humana: o desgaste que os anos de viagens e tournées provocaram nos quatro rapazes, o impacto "sociológico" desses primeiros anos em que a sua simples presença num palco era suficiente para virar do avesso uma multidão de adolescentes. Sendo americano, e estando a questão racial outra vez numa especialíssima ordem do dia na América, os momentos mais curiosos do filme (e se não inéditos, talvez nunca explorados com este relevo) são aqueles em que se lembra que o apogeu dos Beatles coincidiu com o apogeu da luta pelos direitos cívicos dos negros americanos: há intervenções de Whoopi Goldberg (para quem "os Beatles não eram nem brancos nem pretos, eram os Beatles") ou da historiadora Kitty Oliver (que conta que foi num concerto dos Beatles que pela primeira vez viu pretos e brancos todos misturados, sem que uns se importassem com a presença dos outros), há imagens de arquivo onde Paul McCartney, com candura que pode ser falsa ou genuína, revela a um TV do sul dos Estados Unidos que "não percebe" porque é que o público deva ser separado porque "são todos pessoas" (e o filme mostra um documento, integrante dos contractos com os promotores, onde os Beatles salvaguardavam o direito de se recusaram a tocar perante plateias "segregadas").

Fora certos pormenores ou ângulos de abordagem como este, relativamente originais, o filme não trará nada de muito novo a quem conheça a história dos Beatles de trás para a frente, mas a profusão de imagens e sons de arquivo (não há uma voz "off" nem um depoimento "centrais", a condução oral do filme está sempre a desdobrar-se), montadas com ritmo e energia, garante ao filme uma dinâmica sempre interessante, sem tempos mortos, e de vez em quando uma boa ideia. Como quando se passa de imagens dos últimos concertos de 1966 para a vez seguinte em que os Beatles se apresentaram ao vivo, em 1969, no "clandestino" concerto no telhado dos seus escritórios em Savile Row: passaram três anos, mais coisa menos coisa, mas a mudança física dos protagonistas sugere que passou uma vida, já não vemos rapazolas, vemos homens feitos.

Depois do genérico final há um bónus, uma versão remontada de 30 minutos do lendário concerto no Shea Stadium de Nova Iorque em 1965: o restauro da imagem quase faz parecer que o estamos a ver pela primeira vez, o suor que cola a madeixa de Lennon à sua testa nunca pareceu tão real, tão humano.

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