Da mentira vital de Ibsen a um planeta habitado por mulheres

Pela segunda vez, o Teatro Nacional D. Maria II apresenta a nova temporada com um fim-de-semana de portas abertas. Entrada Livre ergue uma festa em torno do teatro e abre com uma viagem de Ibsen à ficção científica.

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O Pato Selvagem, de Ibsen, com encenação de Tiago Guedes FILIPE FERREIRA
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Nova Criação, de Ágata Pinho KATE SARAGAÇO-GOMES

Há um ano, Tiago Rodrigues fazia uma desmedida entrada no Nacional ao reescrever e apresentar em sequência três tragédias clássicas gregas. Foi o primeiro grande momento de afirmação da sua mão enquanto director do Teatro Nacional D. Maria II, e anunciava desde logo que uma das marcas do seu mandato passaria por colocar os textos maiores do património do teatro em diálogo com o presente. O ciclo Ifigénia, Agamémnon e Electra chamava a relação com a memória à boca de cena, numa violenta espiral de vingança em que cada novo trágico acontecimento desencadeava o trágico acontecimento seguinte – apagando tudo o que o precedera.

Na sua segunda temporada à frente do Nacional, Tiago Rodrigues delega no encenador e realizador Tiago Guedes essa função de pôr às cavalitas de um clássico uma reflexão capaz de superar as amarras temporais. O Pato Selvagem, texto escrito por Henrik Ibsen em 1884 e estreado no ano seguinte, retoma a temática de O Inimigo do Povo – da esfera pública para a íntima –, questionando a utilidade e a moralidade de verdade e mentira. Foram precisamente conversas em torno deste contexto que levaram a que há dez anos o actor João Pedro Vaz (das Comédias do Minho) tivesse sugerido a peça a Tiago Guedes. A faísca entre os dois, texto e encenador, foi imediata. Mas nenhuma porta no futuro próximo levaria à concretização desse interesse que “foi sobrevivendo a vários outros interesses”, conforme explica Guedes ao PÚBLICO. No entretanto, realizou a série de Bruno Nogueira e Gonçalo Waddington Odisseia, encenou The Pillowman, de Martin McDonagh, e dirigiu o filme Entre os Dedos.

Com o desafio concreto de se atirar a O Pato Selvagem, Tiago Guedes regressou agora ao texto pela primeira vez com a intenção de lhe dar vida. “O que li do texto há dez anos é diferente do que sinto hoje”, diz. “Mesmo o meu olhar sobre a temática é diferente, porque a vida vai-nos transformando. Mas os temas estavam lá e tive de lidar com eles – a importância da verdade e o conceito da mentira vital, de que todos precisamos para ir suportando a vida.” A verdade nem sempre é virtuosa, a mentira nem sempre é nociva. Na peça de Ibsen, Gregers Werle é o defensor da verdade a todo o custo, com a qual desmonta com efeitos ruinosos a vida da sua família. A “mentira vital”, capaz de manter um equilíbrio frágil, é para o encenador aquilo que “usamos sempre para nos irmos esquecendo do quão insignificante pode ser a nossa vida e esquecermo-nos de que caminhamos todos para o mesmo fim.” Nesse sentido, vê em O Pato Selvagem “um texto muito negro”, apontando para a conclusão de que “tudo é uma ilusão na qual temos de ir vivendo dentro das nossas pequenas bolhas de ilusão para nos salvarmos”.

Gregers é, no entanto, um indefectível da verdade, “um fanático que quer que as pessoas vivam de forma puritana, a verdade acima de tudo”. Ibsen, acredita Guedes, armadilha a personagem, oferecendo suficientes razões passadas para o seu comportamento a fim de a sua obsessão não parecer uma simples alienação que compreende a realidade de forma distorcida. O encenador vê nesta relação com a verdade e na sua imposição à restante família algo comparável às “mentalidades fanáticas dos tempos que hoje vivemos": "Quando alguém vive preso a tanto fanatismo e se acha detentor de uma verdade, convence-se de que todos os outros devem ver o mundo com os seus olhos. O que sinto aqui é que vai para lá da religião, é humano.”

E, por ser humano, Tiago Guedes dedica-se àquilo que sempre faz com as suas personagens: defende-as a todas por igual. Sem usar o preto e o branco de heróis e vilões, acreditando que o conflito emergirá naturalmente.

Um planeta feminino

Em cena na Sala Garrett até 9 de Outubro, O Pato Selvagem conta com interpretações de Gonçalo Waddington, Tónan Quito, Pedro Gil, João Grosso ou Anabela Almeida, e música do ex-Ornatos Violeta Manel Cruz, sendo um dos naturais destaques do Entrada Livre – pelo segundo ano consecutivo, o Teatro Nacional abre a temporada com um fim-de-semana de portas abertas a quem queira assistir gratuitamente aos primeiros espectáculos da programação. Do Entrada Livre faz também parte Esta É a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, criação de Joana Craveiro trabalhada localmente com os habitantes de Lisboa, na sequência de experiências semelhantes em Viseu e no Porto, um pequeno teatro de rua com texto de José Luís Peixoto e direcção de Miguel Moreira (Na Rua), concertos na varanda do teatro por Filipe Melo Trio (sexta-feira) e Cais do Sodré Funk Connection (sábado), leituras encenadas de textos de Nelson Rodrigues e de As Criadas, de Jean Genet (antecipando a peça que Marco Martins levará a palco em Novembro), uma feira do livro de teatro, debates e lançamento de livros. Assim como a primeira proposta do também reincidente ciclo Recém-Nascidos: Nova Criação, de Ágata Pinho.

Depois de em 2015 ter apresentado no D. Maria II O Fosso dos Heróis, releitura livre de Cassandra, texto de Christa Wolf publicado em 1983 debruçado sobre uma visão feminina da guerra, Ágata Pinho estreia agora na Sala Estúdio Nova Criação, peça a que regressará a 28 e 29 de Novembro no mesmo espaço. Nova Criação volta a colocar as preocupações feministas da actriz e encenadora no centro das suas propostas. Ao mesmo tempo que mergulhava num mestrado em Estudos Feministas em que decidiu investigar as autoras portuguesas de ficção científica, começou a crescer em Ágata a vontade de passar esta investigação para o espaço teatral.

Aquilo que essa investigação revelou foi a quase inexistência de autoras portuguesas deste género literário antes dos anos de proliferação autoeditada proporcionados pela Internet. “Falei com especialistas, autores e autoras, antigos editores das colecções de ficção científica e quase ninguém me sabia dizer nomes, quanto mais títulos dos livros.” A busca por todos os alfarrabistas que encontrou em Lisboa e Porto e a peneiração de todos as possíveis pistas on-line deixaram-na praticamente no mesmo ponto de ignorância. “Há mulheres que escrevem, há livros dessas mulheres publicados, mas onde está a informação e onde estão esses livros, porque é que ninguém sabe de nada?”, interroga-se.

A partir daí, Ágata começou a desenhar uma peça em que duas mulheres são convocadas para tentar reescrever um destes livros desaparecidos até que, aos poucos, se percebe que estão a ser testadas para uma outra missão bem mais ambiciosa: a de integrar uma colónia exclusivamente de mulheres localizada num outro planeta, ocupada com a tarefa de tentar criar de raiz uma sociedade em que a igualdade de género não tenha de partir de uma situação de fragrante desequilíbrio e construindo do zero um outro modelo social com a consciência de que “só dará frutos passadas duas ou três gerações”. Inspirada por uma narrativa comum na ficção feminista norte-americana do século XX, quis imaginar o que seriam as conquistas de igualdade se pudesse ser dadas como adquiridas e não ficassem dependentes de cada novo ciclo político.

Não se trata de uma desistência deste mundo, garante. É antes uma forma de chamar o futuro ao presente.

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