Memória de uma cidade

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Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela ­- O projecto de criação em colaboração Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela iniciou-se em 2009 e vai na quinta edição. As quatro primeiras decorreram em Lisboa, a cidade onde o Teatro do Vestido quer viver, a partir de convites feitos pelos membros da companhia a cúmplices externos para uma reflexão: a primeira, no Largo de Santo Antoninho, juntou Rosinda Costa ao músico Simão Costa; a segunda, no número 49 da ZDB, juntou Tânia Guerreira à artista visual Catarina Vasconcelos; a terceira, no International Design Hotel, juntou Joana Craveiro ao performer Miguel Bonneville; a quarta, no Cais do Sodré, juntou Gonçalo Alegria a outro artista visual, João Ferro Martins JOÃO TUNA

Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela é uma história que começa em Lisboa mas acaba no Porto - por agora. O Teatro do Vestido está de regresso a uma cidade onde quis viver o tempo suficiente para lhe poder chamar sua.

Em baixo, à esquerda, a sala onde ensaia o rancho. À direita, ao lado do restaurante que agora está sempre cheio "porque veio na Time Out", a última barbearia da Vitória. Descendo, a rua onde uma fadista muito conhecida foi uma rapariga como as outras, o miradouro onde não se pode entrar a não ser "para fins turísticos" (abrir a boca de espanto), e as escadas com vista para uma casa (ler: vida) desfeita. Subindo, o quarto de uma pensão onde também nos podiam ter acontecido coisas, se tivéssemos uma coisa com quartos de pensão, a igreja onde não entrávamos desde o tempo das invasões francesas, a senhora que tinha um gato e as janelas do hospital velho onde o pai é capaz de morrer (por favor não).

Esta não é a cidade do Teatro do Vestido - e no entanto eles estão em casa neste mapa que levantaram em apenas duas semanas de imersão na Vitória, a freguesia do centro histórico do Porto que de dia é dos advogados (audiências no Palácio da Justiça, tripas na Casa Correia, cabidela no Rei dos Galos de Amarante) e dos meliantes (cigarros, cafés e às vezes pancada à porta do Tribunal de Instrução Criminal) e de noite é dos velhos moradores que ainda não foram empurrados dali para fora (por enquanto, apenas do miradouro) por essa coisa cintilante chamada gentrificação (mas cuidado: já há uma tasca gourmet).

Esta não é a cidade do Teatro do Vestido, dizíamos - e no entanto Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela é o título do espectáculo que desde anteontem retomam no Porto, com partida do Mosteiro de São Bento da Vitória e sete vias diferentes (uma por cada co-criador e intérprete, a saber: Ainhoa Vidal, Gonçalo Alegria, Joana Craveiro, Rosinda Costa, Sofia Dinger, Tânia Guerreiro, Victor Hugo Pontes), todas directas ao coração do Porto.

Quinto capítulo de uma série de interrogações sobre a possibilidade de vida nas cidades, nas nossas cidades (ver caixa), a edição Porto de Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela resulta de um convite do Teatro Nacional São João (TNSJ) para uma criação de raiz feita em cima de uma das zonas de implantação da instituição, o Mosteiro de São Bento da Vitória. Muito atrás desse convite, numa altura em que a companhia ainda não tinha um espaço de ensaio fixo, uma espécie de epifania num engarrafamento em Lisboa, o lugar onde tudo começou: "Em vez de olharmos para a estrada, começámos a olhar para os prédios, as ruas, as pessoas, e havia uma sensação de deslocamento, uma quase orfandade forçada que Lisboa - a nossa cidade, dizemos nós - nos fazia sentir. Parecia que nos empurrava para fora dela (...). Mas, ao mesmo tempo, havia todo aquele espaço - a cidade toda - a abrir-se assim à nossa frente, à nossa volta. Agarrámos em nós e tomámos a decisão de continuar a viver ali e de o dizer a todos, mas mesmo todos", contam em Teatro do Vestido, E Agora Já Tinham Passado 10 Anos, o livro em que recapitulam uma década de trabalho.

Estávamos em 2009 e a apologia da emigração ainda não dominava o discurso oficial sobre o futuro. Três anos depois, uma expressão como Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela assumiu outra dimensão, uma dimensão de manifesto contra estes tempos em "que tudo nos empurra verdadeiramente para fora, já não da nossa cidade, mas deste país".

É aqui que estamos, diz ao Ípsilon Joana Craveiro a meio de mais uma tarde de ensaios no Mosteiro de São Bento da Vitória. Não muito longe, afinal, apenas a 300 quilómetros, desse dia em que olhou para "mais um prédio devoluto" e pensou "aqui podiam acontecer coisas". Diz Joana: "A única resposta que podemos dar a esta ordem de saída é ficar - e continuar a trabalhar. É o maior acto de resistência de que somos capazes. Nesse sentido, esta criação adquire outro sentido, mais declarado. O próximo passo é reflectir como é que chegámos aqui - é um trabalho urgente."

A caminhar

Ao contrário do que aconteceu nos quatro episódios anteriores de Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela, desta vez a equipa da companhia está inteira - e reforçada com dois criadores convidados, Victor Hugo Pontes e Sofia Dinger, que não são locais mas quase. "Acabámos por convidar dois forasteiros com ligação à cidade, isso criou um ruído que nos interessou muito: o Victor é de Guimarães mas adoptou o Porto, a Sofia nasceu fora [em Arouca], mas viveu cá dos dez aos 20 anos, antes de sair para Lisboa", explica Joana. Ao longo de "duas semanas intensíssimas", que incluíram visitas ao Porto conduzidas por "guias improváveis" e conversas com os habitantes e frequentadores da Vitória, cada criador construiu o seu solo - um solo itinerante, aproximação pessoal, e por camadas, a uma parte do inesgotável mapa da Vitória, que a companhia escavou como se escava um palimpsesto, e que se dá a ver no final do espectáculo.

À primeira tarefa - encontrar um percurso - seguiram-se outras, em parte orientadas por um texto de Michel de Certeau sobre "o longo poema de caminhar". Caminhando, também o espectador se aventura num território entre a realidade e a ficção - porque "há uma geografia poética que se sobrepõe à geografia literal" das ruas, das escadas, das barbearias, dos jardins, dos quartos de pensão. Uma geografia a conquistar por quem vem de fora e quer fazer sua a cidade dos outros.

No caso de Joana, havia um passado a ultrapassar: "A minha relação anterior com o Porto não era muito feliz, mas no fim da primeira temporada da peça [em Maio] saí daqui a pensar que esta até podia ser a minha cidade". Naquele solo do quarto de pensão ("Tenho uma coisa com pensões e hotéis e janelas sobre a cidade", admite Joana), que de certa forma evoca o seu episódio em Lisboa com Miguel Bonneville (ver caixa), está o Porto como estão "muitas outras cidades que não são mas podiam ser daqui".

Ainhoa Vidal, que chegou "atrasada" à residência do Teatro do Vestido no Porto - mas que entretanto voltou para trabalhar com o Circolando numa nova peça, Arraial, e viveu dois meses na Vitória -, usou não só histórias dela como histórias dos outros. "A história do rancho folclórico foi a Sofia [Dinger] que me deu. A do advogado é uma história pessoal minha. E depois houve o que as pessoas me disseram nos cafés, nas mercearias, porque este é um bairro onde ainda há tempo para falar - as pessoas aqui dão-te muito, mas também tomam conta do que te dizem", comenta. A RosindaCosta até deram um gato: "Na Vitória ainda há esta coisa fantástica de a vizinha não servir só para pedir a salsa. E no início a minha história tinha um gato, e a dona do gato, que todas as noites estava à minha espera para dizer a sua deixa."

Na rua que Gonçalo Alegria escolheu - e nas escadas de Tânia Guerreiro -, pelo contrário, não há quase ninguém. "É uma rua esconsa, de um lado um edifício histórico que já teve várias encarnações, do outro uma parede. Quando a vemos de cima parece que não tem ninguém e no entanto acontecem coisas, como se houvesse uma vida escondida. Vêem miúdas falar de amores e desamores enquanto fumam cigarros, vem a malta que está metida em sarilhos esperar os amigos", conta ao Ípsilon. Umas coisas do Camilo, outras de um roteiro encontrado num alfarrabista - assim se compôs o solo de Gonçalo, o solo de "um fantasma" numa cidade "sem a pressão de ser capital, e que por isso não se arma ao pingarelho".

Mas isto, claro, é de quem vem sem ser para ficar. Victor Hugo Pontes, que ficou e viu "toda a gente" sair, acha de repente "angustiante continuar aqui" - apesar da violenta honestidade das pessoas do Porto, "que te abraçam verdadeiramente": "Artisticamente, tornou-se difícil respirar. Há anos que não consigo cá apresentar uma única peça minha."

Sofia Dinger, que aos 20 anos foi para Lisboa continuar os estudos e por lá ficou ("A minha família de trabalho está em Lisboa. Aconteceu. Não digo isto com pena nem sem pena"), ainda se sente "daqui". É dela a frase que ficou a piscar na cabeça de Joana Craveiro: "Estou sempre a ver quando é que esta cidade me passa uma rasteira". É verdade que é sobre o Porto, mas pode passar a ser sobre qualquer outra cidade - desde que queiramos viver nela.

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