Um furacão na praça do Rossio

A chegada de Tiago Rodrigues ao TNDMII é uma lufada de ar fresco, alguns diriam uma rabanada de vento, no panorama das artes do espectáculo em Portugal.

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Ifigénia Miguel Manso
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Agamémnon Miguel Manso
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Electra Miguel Manso

O fim-de-semana em que estas peças estrearam foi acompanhado por uma extensão da programação do Teatro Nacional Dona Maria II aos espaços em volta como nunca se tinha visto, o que fez da abertura da temporada um acontecimento público. Não se tratou apenas de uma acção promocional. Sem expectativa, não há teatro.

Estas peças apresentam-se como uma espécie de carta aberta ao país (desde logo, na maneira como coro e protagonistas se dirigem directamente à sala; depois, no modo como o autor traça tangentes à mitologia nacional). A chegada de Tiago Rodrigues ao TNDMII é uma lufada de ar fresco, alguns diriam uma rabanada de vento, no panorama das artes do espectáculo em Portugal.

Ao pegar nas peças dos três maiores trágicos gregos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, para dar o tiro de partida da sua temporada, o Nacional refunda, pelo menos simbolicamente, o seu teatro. Note-se que Tiago Rodrigues é o primeiro director do TNDMII que também é dramaturgo desde Ribeirinho (que reabriu o teatro, fechado desde o incêndio de 1964, em 1978), cumprindo assim um desígnio que vem desde a criação da sala, com Almeida Garrett. Talvez por isso os artifícios teatrais mais importantes deste espectáculo sejam as metáforas e as alusões.

O novelo de vingança que liga as mortes de Ifigénia, Agamémnon, Egisto e Clitemnestra, ao fim do qual se opta pelo primado da lei, é muitas vezes usado pelos criadores teatrais para ecoar a história contemporânea. A alusão ao recente referendo na Grécia, quando se dá a escolha entre sacrificar ou não Ifigénia; e o uso da fachada do TNDMII (uma fotografia de arquivo, de José Marques, datada de 1979) para representar o palácio de Agamémnon, são exemplo disso.

A estas referências directas opõem-se precisamente a dificuldade de recordar, de falar e de ser ouvido, e as respectivas acções para ultrapassar essa dificuldade, tanto do coro como dos protagonistas. O símbolo desta dificuldade é o nevoeiro que cega, emudece e ensurdece as personagens, e o seu contraponto o prometido vento que levará as velas dos Gregos a Tróia e transportará a vingança de Orestes, posto no palco por um dezena ou mais de ventoinhas que se ligam nos momentos certos.

O vento, porém, traz a sua própria espécie de silêncio, com que acaba a trilogia. Palavras, diz o povo, leva-as o vento. Com essa dissolução de vento e nevoeiro termina o trabalho do herói que devolve ao povo, lá está, a responsabilidade de agir, agora sem a desculpa do mutismo ou da falta de memória. A fachada do TNDMII no cenário de Agamémnon pode representar ou não o Estado português, mas a combinação de reis, heróis e nevoeiros constitui uma alegoria que todos reconhecem.

As três peças têm as suas arestas. Sempre que se explica demasiado o enredo, as ações ganham em ironia mas perdem em força. Ifigénia, com o sacrifício aparentemente irracional, e Electra, com a monstruosidade dos actos, são mais difíceis de realizar. Agamémnon, associado à história de poder, é o espectáculo de efeito mais duradouro.

É também nesta peça que a visão do autor, transportada por Cassandra, melhor se realiza. O aviso, na primeira peça, de que isto vai acabar mal, e, no último texto, que é melhor não ficar à espera, falam por si. O aviso é encarnado na figura de Cassandra, e tem eco nas tentativas de lembrança do coro e das personagens na primeira peça, no jogo de antecipações e projeções da segunda, e nas perguntas contínuas do último texto.

Cassandra não tinha só o poder de ver o futuro próximo mas também a maldição de não ser compreendida, como se ficasse para sempre no lugar da criança que não deve abrir a boca para falar, ou a quem ninguém presta atenção. Essa impotência contamina Orestes e Electra, cuja vingança parece apenas uma fantasia juvenil, um ritual de rua, uma farsa rufia. Não há deuses nem heróis, nem há tragédia ou drama, só os restos disso.

Num mundo em que os eleitores não assumem as responsabilidades, a delinquência é juvenil e a guerra feita por crianças, a invectiva é clara. Isabel Abreu, magnífica, Miguel Borges e Flávia Gusmão, eléctricos, glosam este mote. João Grosso, José Neves, Maria Amélia Matta, Paula Mora, Manuel Coelho e Lúcia Maria, os três últimos no elenco do TNDMII desde os anos 70, revivem os argumentos e as assombrações das personagens com outra gravidade. No palco, são eles as testemunhas directas dos últimos 40 anos, que se apresentam com um brilho impressionante, fruto do método poético de Tiago Rodrigues, de combinação das pessoas dos actores com a fantasia das personagens. Deste todo, nasceu um grande coro de Cassandras que, a uma só voz, se faz ouvir com estrondo.


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