A emigração lusa no Rio de Janeiro conta a história de dois países

Vanessa Rodrigues foi emigrante no Brasil e voltou ao país para filmar a sua primeira longa-metragem — sobre emigração. "Baptismo de Terra" fala da chegada dos lusitanos ao Rio e da herança destes "estrangeiros conhecidos" na cidade. Filme chega a Portugal este ano

Antes de o Brasil lhe acontecer, havia um muro à volta dela. Cheio de regras, auto-cobranças, perfeccionismos exagerados. Para lá dele, Vanessa Ribeiro Rodrigues encontrou uma paisagem carregada de leveza e criatividade, aprendeu a rir dela mesma. Outra pessoa se revelou. Por isso, costuma dizer que há “um antes e um depois” do país tropical onde aterrou em 2005 e onde viveu cinco anos. A rota traçada para aquele lado do mundo aconteceu por “um acaso” — e ela foi “na fé”, como aprendeu a dizer (e a fazer) com os brasileiros. Em Julho, a ex-emigrante apresentou no Rio de Janeiro, em pré-estreia, um documentário sobre a emigração portuguesa naquela cidade. Um filme sobre dois países que é também sobre ela. Ainda este ano, “Baptismo de Terra” deverá chegar a terras lusas.

É um ciclo de uma década que se cumpre. Quando aterrou em São Paulo para trabalhar para a EDP no âmbito do programa Inov Contacto, Vanessa Rodrigues sabia pouco sobre aquele país. Chocou com a “celeridade urbana” da cidade que compara com um “plano sequência”, onde várias narrativas se desenham ao mesmo tempo, no mesmo sítio. Mas rapidamente se adaptou ao ritmo do samba. A viver como São Paulo respira: freneticamente. Fez cursos de fotografia, de teatro, de marketing cultural, de documentário. Viajou. E nove meses depois, quando o programa de estágios internacionais terminou, soube que não era tempo de regressar.

Um contrato de trabalho com a EDP tornou viável a permanência por mais um ano. Depois, Vanessa despediu-se para arriscar transformar-se em jornalista freelancer no Brasil. Trabalhou para o "PÚBLICO", para o "Sol", para o "Diário de Notícias" e "TSF". Descobriu no jornalismo “uma ferramenta” para chegar onde queria: o documentário. “Quando me perguntavam se queria ser jornalista de rádio, televisão ou imprensa, respondia que queria ser jornalista de tudo. Gosto de trabalhar com o real em todas as linguagens”, contou ao P3 numa entrevista no “lugar mais tropical da cidade do Porto”, os jardins do Palácio de Cristal. “Lembro-me de estar em Paraty a ver o mar e pensar: o que quero mesmo fazer é documentário.”

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Vanessa é jornalista e encontrou no documentário a sua linguagem preferencial Rui Farinha/ nFactos

Meu Brasil português

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Pico migratório de portugueses no Brasil ocorreu no início do século XX Baptismo de Terra/ DR

“Baptismo de Terra” é a estreia da matosinhense em longas-metragens. Em uma hora e quarenta minutos, o filme, gravado em 4K, ultra HD, mostra através de seis personagens, cada uma delas representante de um elemento da natureza, as dificuldades dos emigrantes portugueses na chegada ao Rio de Janeiro ao longo das últimas décadas. Revela a “grande influência” dos lusos na definição da identidade carioca — uma herança que, de tão “entranhada”, se torna frequentemente esquecida.

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O actor Ricardo Pereira é um dos seis personagens que conta a sua história no documentário Baptismo de Terra/ DR

“Há algum desconhecimento desta ligação entre os dois países, da influência portuguesa”, percebeu. “Em coisas tão simples como a participação em movimentos sindicais e políticos. Em negócios como os autocarros. Em restaurantes, supermercados, mercearias, padarias ou na arquitectura”, exemplifica.

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Vanessa trabalhou com uma equipa maioritariamente portuguesa e filmou em 4K, ultra HD Baptismo de Terra/ DR

Não tem muito mais de uma década a investigação aprofundada sobre a emigração portuguesa naquele lado do mundo. Talvez, percebeu a jornalista, porque “os portugueses sempre se mesclaram na cidade”. Eram os “estrangeiros conhecidos” como lhe disse uma das historiadoras entrevistadas para o filme: “Vinham de outro país, mas falavam a mesma língua. Eram estrangeiros mas ao mesmo tempo conhecidos.”

Vanessa Rodrigues embarcou na aventura de “Baptimo de Terra” por um desafio lançado por Susana Sabrosa Audi, cônsul-adjunta de Portugal no Rio de Janeiro, durante uma visita à cidade para receber um prémio na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). “Disse-me que a comunidade mais antiga de emigrantes estava a desaparecer e que estava na hora de fazer esse registo”, recorda. Naquela conversa, Susana Audi contou-lhe a história de Paulo Simões, luso-descendente que fez com os filhos e os netos um baptismo de terra (“literalmente pôr terra do lugar de origem na cara”). Aquela “metáfora, tão forte”, definiu de imediato o nome do documentário.

Em Setembro do ano passado, depois de uma aprovação da proposta delineada por Vanessa e de muita criatividade para completar o financiamento do filme, o projecto foi para o terreno: três semanas de pré-produção, 20 dias de filmagens e nove meses de edição. A também docente na Universidade Lusófona levou na bagagem a alma de emigrante. Com esse sentimento, “construir a história” e “definir as perguntas para cada entrevistado” tornou-se mais simples. A cada narrativa, Vanessa Rodrigues criava um novo elo: “Ouvia-os e identificava-me com cada um deles”, conta com o leve sotaque brasileiro que preserva.

Com o Rio de Janeiro como o “sétimo protagonista”, o documentário percorre a narrativa da emigração portuguesa na cidade maravilhosa desde os seus primórdios, com entrevistas a vários estudiosos do tema e aos representantes portugueses na urbe. Depois, parte para as histórias na primeira pessoa.

Há a fadista Maria Alcina, chegada ao Brasil de barco nos anos 50, lançada ao trabalho desde muito cedo. Fernando Horta, emigrado nos anos 60, com 14 anos, presidente da escola de samba Unidos da Tijuca há mais de três décadas. Paulo Simões, na casa dos 70 anos, um luso-descendente, filho de emigrantes trabalhadores numa padaria. O “arauto do baptimo de terra”. Há a vida de Marta Rocha, também luso-descendente, filha de transmontanos. A primeira mulher na história do Brasil a assumir um cargo elevado nas forças policiais do país: foi chefe da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro durante 30 anos. Como representante da geração mais recente, surge Luís Santos, um dos mentores do projecto de doçaria típica portuguesa Arte Conventual, iniciado na comunidade de favelas Complexo do Alemão e instalado agora num "shopping" de classe alta no Leblon. A fechar, o actor Ricardo Pereira, representante da “ponte luso-brasileira que continua a existir”, cujos dois filhos nasceram no Brasil e têm já dupla nacionalidade.

Os emigrantes de hoje: jovens e qualificados

É secular a ligação existente entre os dois países. Desde finais do século XIX que o Brasil ganhou contornos de “terra de oportunidade” no imaginário luso, e “no início do século XX” o fluxo migratório de portugueses para o Brasil conheceu o seu expoente, explanou a antropóloga e docente na Universidade Nova de Lisboa Marta Vilar Rosales, que recentemente coordenou um estudo sobre as migrações contemporâneas entre os dois países. De facto, sublinha, “esse fluxo permitiu o enriquecimento de muitas famílias da classe trabalhadora, especialmente nessa época. Saíam daqui e eram bem sucedidas, muitas delas retornando depois com uma fortuna razoável.”

Bem diferente desses tempos é a emigração analisada no projecto de Marta Vilar Rosales “Travessias do Atlântico: materialidade, movimentos contemporâneos e políticas de pertença”, feito entre 2008 e 2015. Se nos anos 50, altura em que a personagem Maria Alcina em “Baptismo de Terra” se aventurou num barco, a emigração era pensada “pelo menos a médio prazo”, agora “é encarada como uma experiência mais transitória e menos estruturante”. “Têm a sensação de que se as coisas correrem mal no Brasil é muito fácil tentar outro destino”, comenta Marta Rosales, com um pequeno parênteses logo de seguida: “Não é assim tão simples.”

A emigração lusa para o Brasil apresentou uma queda pelo segundo ano consecutivo, com 1294 entradas em 2015, apenas 3,5% do total de pessoas chegadas ao país, revelou recentemente o Observatório da Emigração. A tendência era contrária entre 2004 e 2013 (com excepção de um pequena descida em 2006), com o pico a dar-se em 2013, com 2913 entradas. Actualmente, o Brasil é o 12.º país para onde mais portugueses emigram.

Os que arriscam são sobretudo “jovens qualificados, com profissões liberais, ou ligados à ciência ou ao ensino”. Pessoas que encontravam “dificuldades em estruturar uma carreira” no país de origem. São sobretudo “oriundos das grandes cidades” (com Lisboa na liderança) em busca da urbanidade brasileira. E apesar de a língua comum continuar a facilitar a integração, enfrentam uma série de dificuldades na chegada: “Encontrámos pessoas que foram sem contrato de trabalho e estavam sem rede, muitas delas a trabalhar ilegalmente, sujeitas à precarização”, conta a antropóloga. No Brasil, avisa, “conseguir um visto de trabalho e estabelecer residência não é fácil.”

De tudo isso se fala também em "Baptismo de Terra". “As dificuldades são muito diferentes ao longo dos anos”, comenta Vanessa Rodrigues, 35 anos. “Outrora os trabalhos eram mal pagos, a vida era muito difícil. A nova geração também tem dificuldades em encontrar emprego, mas tem mais facilidade em mover-se. Há sempre um bilhete de volta.” Para a construção da narrativa, a autora inspirou-se na obra “Emigrantes”, de Ferreira de Castro. “Vendeu-se muito a ideia do Brasil como o 'el dorado', chamavam-lhe a árvore das patacas. Era mentira. O ‘Emigrantes’ aborda um pouco isso: as conivências, as negociatas de agências de viagens que vendiam vistos para ganhar dinheiro e entregavam as pessoas à má sorte.”

Na pré-estreia do documentário no Rio De Janeiro, aconteceu a confirmação do sucesso da equipa por detrás do filme, maioritariamente portuguesa. Vários desconhecidos foram ter com Vanessa. Abraçaram-na, agradeceram-lhe por contar a história dos pais, dos avós, dos bisavós. Deles mesmos. Outros garantiram-lhe que, depois de conhecer as raízes deles, certamente iam viajar até Portugal. “Esse foi o melhor presente”, sorri.

Porque todas as histórias importam, a equipa decidiu criar uma plataforma online onde qualquer pessoa pode partilhar (e ler) histórias de emigrantes e luso-descendentes no Rio.

A maratona de trabalho brasileira não terminou. Entre as aulas na universidade, um doutoramento a ser defendido e o jornalismo freelancer pelo país dela, Vanessa Rodrigues vai regressar ao Brasil. Em 2018 deverá andar em filmagens pela Amazónia e ainda este ano vai gravar um novo documentário em São Paulo. Para já, se tudo correr bem, "Baptismo de Terra" vai fazer um percurso de festivais. E depois chegar ao público de todo o país. Esse, diz Vanessa, é o grande final pretendido: “As pessoas verem o filme, conhecerem a nossa história.”

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