O cinema de Douglas Gordon é o que quisermos que ele seja

O artista plástico e cineasta escocês mostrou em Locarno I Had Nowhere to Go, o seu retrato cinematográfico sem imagens de Jonas Mekas. Ao PÚBLICO, Gordon define-se como uma “correia de transmissão” dos artistas que filma

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Os realizadores Douglas Gordon (à esquerda) e Jonas Mekas Festival del Film Locarno/Marco Abram

Comecemos com algo ouvido na sala de imprensa de Locarno a uma jornalista italiana que dizia de I Had Nowhere to Go, com um tom meio maçado, “pois, sim, é muito interessante como ideia, mas Douglas Gordon devia estar a fazer isto como uma instalação num museu, não numa sala de cinema.” O que passa completamente ao lado do que o artista multimedia escocês quis fazer com o seu retrato impressionista de Jonas Mekas. “A certa altura, I Had Nowhere to Go vai ser mostrado em galerias, claro, mas foi pensado para ser visto numa sala de cinema, no maior écrã possível, com o maior som possível”, diz Gordon ao PÚBLICO no seu cerrado sotaque de Glasgow. “Passámos semanas a fazer as misturas finais de som com o sistema Dolby Atmos. Há algo de especial numa sala de cinema, algo de arquitectural, e ver este filme em sala é mais do que apenas uma experiência, é também uma representação não apenas da vida do Jonas, mas da ideia de cinema que o Jonas tem.”

“Jonas”, então, Jonas Mekas (n. 1922), figura tutelar do cinema independente americano e da vanguarda nova-iorquina do pós-guerra, cineasta maior que passou a sua vida a recolher, coleccionar e montar imagens. Mas também Jonas Mekas, desalojado lituano da Segunda Guerra Mundial, finalmente acolhido nos Estados Unidos, cujos diários do período entre 1944 e 1954 foram publicados sob o título I Had Nowhere to Go. São esses diários, e a sua faceta de desalojado e emigrante em constante viagem, que Douglas Gordon (n. 1966) encena em I Had Nowhere to Go, a concurso na competição secundária de Locarno Cineastas do Presente. E que encena de modo radical: 98 minutos de écrã quase sempre a negro, pontuado a espaços por imagens escolhidas, enquanto ouvimos a voz inconfundível de Mekas ler fragmentos dos seus diários, num sotaque que nunca perdeu a sua origem lituana.

De certo modo, I Had Nowhere to Go é uma experiência tão radical como as anteriores incursões filmicas de Gordon, da instalação 24 Hour Psycho (1993) que desacelerava o clássico de Alfred Hitchcock para ser projectado ao longo de um dia inteiro ao seu retrato do futebolista Zidane em campo co-dirigido com Philippe Parreno, Zidane – Um Retrato do Século XXI (2006). Não surpreende que haja quem pergunte se isto é sequer um filme, mas Gordon, entusiasmado, apaixonado, defende-se com unhas e dentes.

“Estava a falar ao telefone com a minha mãe e ela perguntou-me se eu tinha ganho algum prémio,” ri-se o artista, sentado com uma vista magnífica sobre a região do Maggiore, no castelo Visconteo que serve durante Agosto de “ponto de encontro” para os convidados do festival. “Disse-lhe que os prémios só se sabem na semana que vem mas que eu tinha ganho algo de melhor: o Jonas Mekas a dizer-me que sou um cineasta e não um artista. Não é verdade nem deixa de o ser, mas é um elogio extraordinário, porque diz-me que não sou um artista plástico a fazer um filme, mas um cineasta a tentar fazer um filme. Dito isto, Jonas Mekas é maior que o filme, tal como Zinedine Zidane era maior que o filme… Eu sou uma simples correia de transmissão."

O que interessa ao escocês, acima de tudo, é entregar alguma coisa ao público e deixar que ele faça o que bem quiser com o que lhe é dado – uma arte que não se feche sobre si própria mas que as pessoas tragam constantemente consigo, numa lógica de transmissão, de passagem de testemunho, mas também de reconhecimento da memória como um elemento desencadeador desses testemunhos. Gordon avança que é hoje incapaz de comer batatas sem fazer a ponte com o que Mekas diz a certa altura no livro/filme – que ele e o irmão conseguiam viver uma semana inteira a comer apenas batatas, cozinhadas de muitas maneiras diferentes. (É por isso que uma das raras imagens visuais usadas é de uma panela onde se cozinham batatas.)

Um outro fragmento do diário de Mekas usado no filme é central para essa lógica: “Sabes quando ele fala da primeira fotografia que tirou, a um pelotão alemão, e o oficial veio ter com ele e arrancou o rolo da máquina e o atirou para o chão?”, pergunta Gordon. “Algures na Lituânia há um bocado de celulóide que uma bota pisou e cobriu de terra, e isso é para mim uma das mais belas esculturas públicas que nunca ninguém viu. Quando disse isto ao Jonas, ele disse-me que os tanques lhe tinham passado por cima e que portanto nunca será descoberta. E eu disse-lhe que isso não tinha importância nenhuma. Algures na Lituânia a primeira imagem que o Jonas Mekas alguma vez fez está enterrada no chão e isso é maravilhoso.”

Gordon diz meio a brincar que estas declarações o fazem parecer um “velho hippie” ou então um Samuel Beckett de trazer por casa – improvável quando o iPhone de écrã partido, o polo garrido com um rasgão onde deveria estar o logótipo ou os seus braços cobertos de tatuagens sugerem um hooligan ressacado - mas são centrais para a definição do seu trabalho artístico. “Não interessa se é arte ou cinema ou teatro ou escultura. As coisas «são» ou «não são». E se «são», então é isso que é importante. Eu sei, eu sei, é muito Beckett... Mas as coisas mais ínfimas contêm universos dentro de si. O ano passado fui a Pietrasanta, na Toscânia, onde Miguel Ângelo foi buscar o mármore para o seu David – e a pedreira parecia menos uma pedreira do que uma montanha a revelar-se, com as árvores a afastarem-se para mostrar o que está por baixo.” Quase como se tudo o que se pudesse fazer com aquele mármore já estivesse lá dentro, apenas à espera de ganhar vida, e o artista fosse uma espécie de “correia de transmissão” - voltamos à ideia que Gordon já lançara durante a conversa. “O Jonas confia em mim. O filho dele confia em mim. Acho que eles me vêem como uma espécie de guardião da sua integridade. E nunca me pus a questão de pedir a outra pessoa para ler o diário. É a vida dele, é a história dele, tem de ser ele. É ele. E ele não tem de se representar a si próprio. Basta-lhe ser quem é, e cabe-me a mim capturar a sua alma. Porque isto não é uma manipulação da sua vida, é uma impressão, um retrato da sua vida.”

Agora, I Had Nowhere to Go vai seguir o seu percurso – porque, como diz Gordon, “às tantas temos de deixar as coisas seguir o seu caminho” - mas sente-se que é um projecto no qual o artista tem especial orgulho e que vai acompanhar com cuidado, porque é importante que seja visto “como deve ser”. O festival de Toronto será a próxima paragem e Gordon pergunta, já terminada a entrevista, qual seria o sítio ideal para o mostrar em Portugal - país que já visitou muitas vezes, onde tem um projecto com a Fundação Gulbenkian e outro com o produtor Paulo Branco, amigos e restaurantes preferidos. “Porque temos de mostrar este filme em Portugal.” Não resistimos à pergunta: e João César Monteiro? “Quem?” Fez uma versão da Branca de Neve de Robert Walser que é uma espécie de alma gémea de I Had Nowhere to Go. “Adoro Robert Walser, mas nunca vi esse filme. Escreves-me o nome do realizador?” 

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