As ruínas da geração Curtas

A produção portuguesa vista até agora no festival de Vila do Conde tem falado muito do passado que se perdeu. Mas está longe de convencer.

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António, Lindo António, de Ana Maria Gomes
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Fiesta Forever, de Jorge Jácome
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Penúmbria, de Eduardo Brito

É curioso reparar como muitas das curtas portuguesas apresentadas em estreia no concurso do Curtas 2016 têm qualquer coisa de filme de fantasmas ou de apocalipse iminente, de requiem por algo que já terminou ou que está à beira de terminar. Nas primeiras duas sessões competitivas das três já exibidas, isso foi particularmente visível: Penúmbria, de Eduardo Brito, é uma visita a uma cidade (imaginária) mas abandonada pela ocupação humana; Fiesta Forever, de Jorge Jácome, uma colecção de memórias incorpóreas de discotecas de província que já desapareceram e se limitam a ser ruínas; Severed Garden, de Gonçalo Almeida, trata dos pesadelos do futuro de uma mãe à beira de dar à luz; antes, já Setembro, de Leonor Noivo, e Sebastião, o Fantasma, de Lúcia Prancha, falavam do que ficara para trás (numa relação entre pai e filho, homem e mulher, no primeiro caso, entre colonizado e colonizador no segundo).

O mais problemático é que por entre este fascínio pelos fantasmas se procura sem se encontrar uma qualquer identidade, uma qualquer energia, uma qualquer capacidade de construção para lá do desejo de cinema – Severed Garden é menos um filme com princípio, meio e fim, mais uma espécie de “super-trailer” para uma longa que ficou por fazer, um cartão de visita escolar; Setembro (entretanto escalado para a competição de curtas de Locarno) perde-se numa duração excessiva e numa difusão narrativa que não anda longe dos retratos de adolescentes de João Salaviza, mas sem a sua secura.

Há, ainda assim, cinema por aqui. Há Penúmbria, primeira realização de um realizador fascinado pela ideia de partir da realidade para construir cidades ou histórias imaginárias – foi Eduardo Brito que escreveu uma das melhores curtas portuguesas de 2015, A Glória de Fazer Cinema em Portugal, de Manuel Mozos, também ela uma ficção lúdica sobre o que não aconteceu mas podia ter acontecido. Penúmbria é um pequeno conto do imprevisto, uma viagem à Twilight Zone entre as Cidades Obscuras de Schuiten e Peeters e as projecções de Jorge Luis Borges, um exercício cristalino de montagem e narração sobre imagem real que cria o seu próprio tempo e o seu próprio espaço com uma elegância e um rigor que merecem ser notados.

Fiesta Forever, apesar de o seu dispositivo, inteiramente construído em animação 3D a partir de fotografias das discotecas perdidas no tempo, se perder também ele numa duração excessiva. A ideia de visualizar a Internet e as redes sociais como equivalente moderno das antigas discotecas onde toda a gente ia acabar a noite é bastante boa, mas Jorge Jácome perde-se na abstracção conceptual e na redundância narrativa, e nunca consegue que o seu filme toque emocionalmente o espectador.

E há António, Lindo António, documentário da luso-descendente Ana Maria Gomes, que em 40 minutos consegue aquilo que muitas das não-ficções ambientadas na província portuguesa não conseguem: transcender o retrato mais ou menos deslumbrado ou condescendente dos habitantes do “Portugal profundo” para desenhar uma explicação possível do abismo entre quem fica e quem parte, e ao mesmo tempo do que faz Portugal o país que é. O António do título é o tio da realizadora, que emigrou para o Brasil mas nunca mais voltou a casa nem deu notícias; quem ficou para trás ressente-se dessa sensação de abandono, convencida de que o “filho pródigo” tem vergonha das suas origens ou se quis reinventar longe da família.

Há um curioso traço de ligação entre António, Lindo António e Diamond Island, de Davy Chou (outra história de confronto familiar entre a grande cidade e as origens rurais), e há também algo de fantasmas no filme de Ana Maria Gomes, porque estamos sempre a falar de alguém que parece existir apenas na memória de quem o conheceu. Mas, quando a realizadora parte em busca do tio António, António, Lindo António abre-se de outra maneira – e é por aí que se cria a surpresa daquela que é, para já, a nossa obra preferida no Concurso Nacional. Insuficiente para apagar a ideia de uma geração em crise – tratando-se ainda por cima de uma produção francesa –, mas suficiente, a par dos filmes de Eduardo Brito e Jorge Jácome, para percebermos que ainda há gente com ideias e desejos de cinema.

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