O fabricante de sonhos

O Amigo Gigante está longe de ser um Spielberg vintage, mas é impossível não olhar para ele como um filme onde fala de si próprio.

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Um filme que Spielberg parece ter feito mais para si

Coisa estranha, esta do homem que mais contribuiu para a transformação de Hollywood nos anos 1980 em direcção à actual linha de montagem de espectáculos descartáveis ser hoje visto como um “velhinho” que não acompanhou os tempos. O que, na verdade, diz muito mais sobre quem vê e pensa sobre os filmes do que sobre o próprio cineasta ou sobre os filmes em si. Spielberg sempre foi sempre o mais pragmático e o mais classicista dos novos americanos dos anos 1970, e pelo meio das infinitas franchises e sequelas dos nossos dias, tem preferido voltar ao passado e fazer filmes que parecem pertencer a outra era do cinema americano (mesmo que com a tecnologia que esses anos não tinham). Lincoln e Cavalo de Guerra (ambos 2012) e A Ponte dos Espiões (2015), para apenas citar três, são exemplos desse “regresso às origens” que prefere as virtudes tradicionais de um cinema clássico, com cabeça, tronco, membros; actores, corpos, histórias, cenários.

É por aí que faz sentido convocar E. T. a propósito do novo O Amigo Gigante, adaptação de um livro para crianças de Roald Dahl (o autor de Charlie e a Fábrica de Chocolate e dos Contos do Imprevisto): é o filme de Spielberg onde mais se invoca, com menos cinismo, o maravilhoso inocente, optimista e fantasioso da infância, onde o primeiro impulso não é o do medo mas sim o da curiosidade. Sophie (a fabulosa revelação que é Ruby Barnhill), a órfã insone, não resiste a olhar pela janela, e entra numa aventura à medida da imaginação simples e fértil dos miúdos, onde o realismo não foi convidado para a festa. Mas evocar E. T. é também a pior coisa que se pode fazer ao novo filme. Mesmo sendo ambos histórias de “órfãos” desajustados que encontram numa amizade invulgar a salvação, o tempo não volta para trás e a comparação soa a desespero de um marketing que não sabe o que fazer com um filme tão singular como este: uma fita para toda a família que teria feito todo o sentido nos anos áureos da imagem real da Disney, mas que Spielberg parece ter feito mais para si do que para um público que talvez já lá não esteja.

Isto porque é difícil não sentir que o cineasta está aqui a falar de si próprio: o Grande Gigante Gentil (criatura puramente digital construída a partir da performance física e do rosto de Mark Rylance, que lhe dá vida com uma precisão deslumbrante) é um fabricante de sonhos, que trabalha pela calada para trazer a felicidade às pessoas. Nas cenas em que o Gigante manipula as faíscas fluorescentes e efervescentes, sentimos que é a sua própria arte e o prazer que sente nela que Spielberg põe no écrã, e nada lhe interessa a não ser o prazer de contar histórias. Talvez por isso O Amigo Gigante não esconda o desequilíbrio pontual, um déjà-vu próprio e alheio que lhe é aqui e ali fatal (ai as invocações de Harry Potter…). Mas Spielberg compensa-o com a modulação delicadíssima das performances dos seus dois actores principais e com a sua fé inabalada no potencial do cinema para evocar/invocar o maravilhoso. Os momentos em que isso acontece - e que não são tão poucos como isso – são mais do que suficientes para explicar como há pouca gente a filmar “classicamente” como Spielberg hoje em dia, e como esse “classicismo” de que ninguém quer saber anda a fazer muita falta.

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