É só mais um relatório... e daí?

Práticas Comerciais Desleais: o quadro legal europeu não é suficiente.

O Parlamento Europeu aprovou um Relatório pressionando as instâncias comunitárias a adotar medidas eficazes para combater as Práticas Comerciais Desleais. Para quem está por dentro dos meandros dos processos de decisão em Bruxelas poderá ser tentado a pensar: é só mais um Relatório! E do Parlamento Europeu... E daí? Para quê tanto alarido?

Há muito que várias entidades têm pressionado as instâncias europeias a aprovar regulamentação que torne menos desequilibrada e mais equitativa a relação entre a moderna distribuição e os seus fornecedores, sejam os produtores agrícolas ou as indústrias de produtos de grande consumo. Mas Bruxelas teima em não avançar.

O próprio Parlamento Europeu começa a dar sinais de impaciência quando no seu relatório refere que já “aprovou cinco resoluções sobre problemas na cadeia de retalho da UE, incluindo três que dizem especificamente respeito a desequilíbrios e abusos na cadeia de abastecimento alimentar" e que, desde 2009, a Comissão também "elaborou três comunicações e um Livro Verde e encomendou dois relatórios finais sobre temas semelhantes", concluindo que "a realização de mais estudos sobre a situação da cadeia de abastecimento alimentar apenas irá adiar a necessidade premente de ação para ajudar os agricultores [e os restantes fornecedores, acrescentamos nós] a combater as práticas comerciais desleais" (PCD).

Os eurodeputados referem que as PCD são um problema grave, presente em muitos sectores económicos e que ocorrem quando existem disparidades no poder de negociação entre as empresas.

E listam casos amplamente documentados destas Práticas: atrasos de pagamento; modificações unilaterais das condições contratuais ou modificações com efeitos retroctivos; rescisão de contratos de forma repentina e injustificada; transferência injusta do risco comercial; cobrança de pagamentos relativamente a serviços fictícios; imposição de promoções, de taxas de colocação de mercadorias em espaços mais visíveis nas lojas e de outras taxas adicionais ou a transferência dos custos de promoção das mercadorias nos locais de venda para os fornecedores...

O Relatório aborda também as vantagens e inconvenientes das tentativas de autorregulação, com destaque para a iniciativa europeia: Supply Chain Initiative (SCI).

Os operadores, geralmente na tentativa de evitar a adoção de regulamentação, tendencialmente mais penalizadora, tentam encontrar instrumentos que permitam garantir às autoridades que será introduzida uma modificação de comportamentos, através da adoção voluntária de boas práticas. E também assim foi no plano europeu, com fornecedores e distribuidores a chegarem a alguns compromissos, mais amplos ao nível dos princípios, mais restritos no que se refere à metodologia de implementação (que as organizações agrícolas não quiseram subscrever).

Contudo, os eurodeputados acabam por questionar o efeito desses compromissos, afirmando que o formato adotado tem consideráveis limitações e que a sua eficácia é minada por uma ampla gama de lacunas, como por exemplo a falta de sanções por incumprimento a impossibilidade de apresentar queixas anónimas ou ainda a ausência de medidas de execução, para além de não prever investigações por iniciativa própria de um organismo independente.

E acrescentam que as "opções de resolução de litígios ainda não foram efetivamente utilizadas", sendo que "não há casos concretos que permitam avaliar o papel da SCI na luta contra as PCD". Neste sentido, referem o exemplo britânico de gestão de conflitos, liderado pela figura do Groceries Code Adjudictor, como metodologia a seguir à escala europeia, mas também a nível nacional.

O Relatório introduz ainda outras referências muito importantes e com impacto relevante em Portugal. Assim:

refere que “embora os produtos de marca branca possam proporcionar valor acrescentado, uma maior escolha e produtos de ‘comércio equitativo’ aos consumidores – também podem representar uma questão estratégica a médio e longo prazo, dado que introduzem uma dimensão de concorrência horizontal relativamente às marcas industriais que nunca tinha sido considerada anteriormente e podem colocar os retalhistas numa posição desleal e anticoncorrencial, tornando-se simultaneamente cliente e concorrente”;

acrescenta que estas práticas desleais ocorrem não apenas na cadeia de abastecimento alimentar, como também nas cadeias de abastecimento dos restantes produtos ditos de grande consumo;

e indica ainda que qualquer futura legislação europeia nesta matéria tem que levar em consideração as legislações nacionais que foram sendo desenvolvidas, não as devendo colocar em causa.

Assim, quando em Portugal foi aprovada no final de 2013 legislação para combater as Práticas Individuais Restritivas do Comércio, e em especial as Práticas Comerciais Abusivas, que carece de uma mais ampla e cuidada aplicação, e quando os operadores estão em fase avançada de negociações de um Código de Boas Práticas Comerciais, a leitura deste Relatório é fundamental.

E não fará sentido não considerar nessa negociação comentários taxativos que são feitos no mesmo, sobre, por exemplo, a amplitude destas práticas, a necessidade de ampliar a lista de princípios, a importância de criar formatos de gestão de litígios que permitam contrariar o ‘fear factor’ de represálias comerciais por parte de queixosos com menor poder negocial ou, acima de tudo, a inevitabilidade de que a autorregulação seja efetiva, consequente e eficaz, penalizando os comportamentos inadequados de quem – voluntariamente, não se esqueça – aderir a este Código.

Em Portugal, o mercado do grande consumo vale anualmente mais de 16 mil milhões de euros. Os problemas no relacionamento entre fornecedores e distribuidores são públicos, notórios e têm vindo a ser sucessivamente denunciados e chamados à praça pública.

E é por isso que este não é apenas mais um Relatório.

Director-Geral da Centromarca

Sugerir correcção
Ler 1 comentários