Sem asas nem alegria

A vaca voa na política, sorri no comércio e jaz na poesia.

Por força de inusitada alegoria, eis que voltou à ribalta portuguesa um animal tão usado quanto menosprezado: a vaca. Não por adivinhar resultados de jogos de futebol, embora pelo menos uma já o tenha feito (a vaca Yvonne, que no Euro 2012 preferiu Portugal à Alemanha, apesar de ser a Alemanha a alimentá-la, falhando a previsão), mas por ser usada na política. A célebre vaca voadora de António Costa, um boneco articulado que lhe serviu de metáfora para exemplificar que nesta coisa de governar "não há impossíveis". Por isso, calcula-se, teremos um Simplex malhado.

Mas não foi só António Costa. Num anúncio recente, uma marca láctea lançou o "leite de pastagem de vacas felizes que vivem ao ar livre e comem erva fresca 365 dias por ano." Vacas voadoras, vacas felizes, há de tudo. Aliás sempre houve, basta lembrar a célebre marca francesa de queijos La Vache Qui Rit.

Convém lembrar que a vaca está mais presente no nosso quotidiano do que se imagina, isto para lá dos lacticínios ou dos bifes. Referimo-la, na gíria, quando falamos de austeridade ("vacas magras") ou de abundância (o célebre tempo das "vacas gordas"), de sorte ("que grande vaca!") de insultos (a mesma frase, mas com um sentido absolutamente diferente) ou de repartição ("vamos fazer uma vaquinha"). Isto abona em favor da vaca? É duvidoso. Na poética, por exemplo, ela nunca ganhou o estatuto de outros bichos que alimentam sonhos, como a gaivota, o cavalo, a andorinha, o rouxinol, a cigarra, até mesmo a ovelha. Até quando a cantam, é em cenários de melancolia ou morte. Vejamos António Osório, no seu Bestiário, a imaginá-la diante do cutelo de abate: "Olhos de negro/ olhos que deitam/ funda desolada bondade". Ou O’Neill, a vê-la atropelada e a agonizar nas ruas da cidade, uma "vaca de leite em sangue", "pulsando no asfalto", sacando "dos misérrimos bofes o seu muuuu" (As vacas tresmalhadas). Posta a voar na política ou a sorrir no comércio, assim jaz a vaca no prado da poesia; inerme, objecto vivo sem asas nem alegria.

Sugerir correcção
Comentar