Dêem-me um varão, antes que seja tarde

Nunca dancei num varão, tenho pena. Mas fá-lo-ei, garanto-vos. E só não o fiz porque não houve nunca nenhum a jeito e porque sou mesmo muito desengonçado a dançar

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Eu, pecador, me confesso. Em mais de três décadas de trabalho, em vários gabinetes, redacções, salas de reunião e até nos arrumos e acessos aos escritórios por onde passei fiz tremendas malandrices, malabarismos, trenguices, correrias, espreitei para as cuecas das colegas quando a moda era de cós baixo, pregava partidas a todos, indiscriminadamente e sem pudores hierárquicos, jogava à bola com papel que já não interessava, escondia os gravadores, gamava cigarros aos distraídos, pilhava canetas às secretárias, desarrumava as mesas do meu Bessinha e do meu Jorginho — camaradas de grandes lutas editoriais — só para os ver verdes de raiva e, já na era digital, até fiz "facejacking" a um dos meus chefes, que ele tinha a mania que não postava no Facebook. Só nunca dancei num varão, tenho pena. Mas fá-lo-ei, garanto-vos. E só não o fiz porque não houve nunca nenhum a jeito e porque sou mesmo muito desengonçado a dançar.

Confesso-me a propósito das notícias (se soubessem o que me custa chamar-lhes isso) que têm circulado sobre um momento de lazer de alguns funcionários judiciais (sim, sou dos que, no plural, usa o masculino, independentemente das maiorias), que muito naturalmente quiseram partilhar esse momento, nas redes sociais, com os seus amigos.

Vai daí, um dos arautos da chamada imprensa cor-de-rosa entendeu fazer da coisa uma manchete carregada de indignação, ao estilo “vejam-lá-o-que-esta-gente-paga-por-nós-faz-no-horário-de-trabalho”. Mas isso nem é o pior. O pior é que os órgãos de comunicação social do chamado “jornalismo sério” (perdoem-me a redundância, que para ser jornalismo tem que ser sério) foram atrás do rabo da pescadinha, pois não podem deixar de ter cliques online, que é coisa que conta muito para as audiências, para os "marketeers", para os gestores de sapiência pela via do excel e para os que dirigem a modernidade conforme as tabuadas de outros tempos.

Eu, ao contrário, não espero muitos cliques nesta prosa. Tenho sempre dúvidas sobre o meu discernimento, mas deram-me a possibilidade de escrever aqui sobre coisas da vida. Às tantas foi porque quem confiou em mim sabe que, no meio do rigor que tento usar, da honestidade que tento colocar na minha vida (e nunca sei se o consigo, mas tento) e na tentativa de cumprimento íntegro das minhas funções também tenho — imagine-se! — momentos de lazer. Todos aqueles que referi e mais alguns. E juro que vou simular uma dança no varão, mesmo contra a minha vontade, por ser desengonçado a dançar, por já ter sido mais elegante e, sinceramente, porque é coisa que se torna sempre mais agradável quando feita pelo género feminino. Sobre isto, “são gostos”, dirão os desempoeirados da mente; machista e sexista, dirão aqueles que procuram sempre um cristão para mandar aos leões, um judeu para transformar em cinzas ou um muçulmano para confundir as verdadeiras razões dos intermináveis conflitos no Médio Oriente.

Parece que estou a misturar muita coisa? Deve ser da Globalização. Ou da febre que me assola quando vejo gente a tirar das suas gavetas preconceitos relacionados com uma forma de estar padronizada, sensaborona e ditatorial nos costumes.

Posto isto, bem-vindos a Portugal, nação das mais antigas da Europa, onde os corruptos, os desleais, os vendilhões, os que passam por cima do parceiro e os que roubam o Povo escapam sempre porque o Povo indigna-se mais com momentos de lazer alheio (sim, a alegria no trabalho só faz bem e recomenda-se) do que com os corruptos, os desleais, os vendilhões, os que passam por cima do parceiro e os que o roubam.

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