É a vida
É o regresso de Inês Pedrosa aos contos. Catorze narrativas que tentam iluminar lugares recônditos.
No seu último romance, Desamparo (2015), Inês Pedrosa (n. 1962) fez um retrato sem complacências de um país em crise económica, tendo como principal pano de fundo um lugar rural imaginário, a aldeia de Arrifes. “Portugal visto dali é uma paisagem medieval com água potável e confortos modernos.” O retrato de um país onde cada um parece existir por conta própria mas sempre muito dependente da opinião dos outros. Um país rural que aparenta oferecer uma espécie de imunidade à humilhação “possibilitada pela ausência de cosmopolitismo”, e onde “a rudeza da descrença substituía os veludos urbanos da hipocrisia”. Agora, na recente colectânea de contos — são 14, ilustrados por Gilson Lopes — Desnorte, esse país contínua a existir (talvez pintado com cores um pouco mais vivas), mas o foco das histórias torna-se bastante mais interior, tentando iluminar lugares mais recônditos, ocupados com sentimentos que se podem expressar de maneira equívoca (ou manterem-se calados durante muito tempo). À semelhança do que fez nas suas obras anteriores, a Inês Pedrosa interessa-lhe explorar o campo dos afectos, dos sentimentos, e sobretudo das relações entre homem e mulher, que são relações de poder. Por isso, não se limita a contar uma história, mas por vezes também interroga ou provoca o leitor com aforismos que pontuam o tom geral das narrativas.
Talvez o melhor conto desta colectânea (pelo menos o mais bem conseguido, talvez pela estranheza da situação) seja o que dá título ao livro, Desnorte, em que dois jovens, ele brasileiro, descendente de judeus alemães, e ela cabo-verdiana nascida em Lisboa, David e Natércia, combinam encontrar-se na Cidade da Praia, em Cabo Verde — onde nenhum estivera antes — para se suicidarem no alto da falésia por trás da Cidade Velha. Estão ambos perdidos, sem norte, conheceram-se na Net, falaram, “ele tinha-lhe oferecido o seu segredo mais íntimo, as fotografias da sua mais bela (embora falhada) tentativa de suicídio, os pulsos abertos e o sangue vermelho escorrendo pelo seu torso muito branco”, e combinaram aquele primeiro e último encontro. Parecia não haver redenção possível, mas a epifania acontece: “Encontrei em ti o norte do meu sul.”
Um outro conto que impressiona, sobretudo pela singular visão de uma amizade com várias décadas, tem por título Suzana. Um homem e uma mulher conhecem-se há exactamente 40 anos, ela sempre foi a maior amiga dele — para ela, ele nem por isso — e de repente parece haver uma luz que ilumina o pensamento do homem e ele põe em causa muita coisa do seu passado. “Talvez nunca se tenha interessado verdadeiramente por mim, o que significa que passei mais de metade da minha vida enganado. Sinto-me estúpido.” Nunca existiu entre eles qualquer espécie de relação amorosa ou apenas erótica, ele acabou relações com outras mulheres apenas porque estas não viam com bons olhos esta amizade, a vida deu-lhes diferentes destinos mas mantiveram sempre o contacto e a proximidade. Agora, de repente, ele questiona-se. Tem uma filha, que admira Suzana, “alguém que finalmente entende o seu desprezo pelo país sujo e marginal em que lhe calhou nascer”. Para o homem, Suzana transforma-se numa espécie de “ideia”, de coisa inventada.
O conto que abre a colectânea, Voz, relata-nos a história de uma jovem mulher, modelo-actriz de novelas, sozinha num quarto de hotel a decidir o que vai ser o resto da sua vida. No mesmo hotel, “lá em cima, na suite”, está um cantor por quem ela parece estar apaixonada, ou melhor, apaixonada pela sua voz. Faz uma espécie de balanço da sua jovem vida, porque o seu “coração é uma floresta cheia de nevoeiro”. De entre a restante dúzia de contos, e talvez pela singularidade do tema, sobressai A páginas tantas, cuja acção decorre num hotel à beira-mar, num lugar onde acontece anualmente (em Fevereiro) um encontro literário, e que (quer se queira quer não) traz de imediato ao leitor o festival Correntes d’Escritas, da Póvoa do Varzim; diz o narrador, a propósito da personagem que organiza o congresso: “daquela corrente desenhada por si, ano a ano”. É um conto polifónico, onde amores e desamores, encontros e desencontros, vão sendo lembrados à vez numa teia de afectos cúmplices que se vai notando.
O desnorte, a falta de rumo, se o entendermos literalmente, não é comum a todos os contos, mas por vezes o que fica das personagens, mais do que a ideia de andarem sem direcção, é o aceitar dos rumos ditados pela vida. E isso, pode-se dizer, é também uma espécie de desnorte, mas “é a vida”.