"Uma justiça célere não é justiça"

Presidente do Supremo Tribunal de Justiça critica a linguagem críptica dos tribunais, mas diz que os portugueses são injustos quando criticam a justiça. A justiça deve estar “ao serviço da competitividade”? Henriques Gaspar não sabe o que é isso.

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Henriques Gaspar, presidente do STJ: "Não gosto de utopias neoliberais na justiça" Rui Gaudêncio

Tem um discurso surpreendente este beirão nascido há 67 anos na Pampilhosa da Serra. Diz frontalmente que as competências das entidades reguladoras põem em causa a separação de poderes do Estado de direito, que não gosta das ideias neoliberais e que a nova ministra não está a mudar a reforma da sua antecessora, apenas a afinar as polémicas mudanças. António Henriques Gaspar, que passou a maior parte da sua carreira como procurador, é desde 2013 presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura. Está em quarto lugar na hierarquia do Estado.

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Tem um discurso surpreendente este beirão nascido há 67 anos na Pampilhosa da Serra. Diz frontalmente que as competências das entidades reguladoras põem em causa a separação de poderes do Estado de direito, que não gosta das ideias neoliberais e que a nova ministra não está a mudar a reforma da sua antecessora, apenas a afinar as polémicas mudanças. António Henriques Gaspar, que passou a maior parte da sua carreira como procurador, é desde 2013 presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, do Conselho Superior da Magistratura. Está em quarto lugar na hierarquia do Estado.

Nesta entrevista só mostra alguma hesitação a falar sobre a legitimidade de manter um suspeito preso preventivamente durante um ano, como aconteceu com José Sócrates. Representante do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entre 1992 e 2003, passou pelo Comité dos Direitos do Homem e pelo Comité Contra a Tortura das Nações Unidas. Hoje diz-se um órfão da social-democracia alemã, ao mesmo tempo que põe em causa a ideia de que os tribunais são um obstáculo à competitividade do país: "Não é a justiça que faz dano à economia, é o contrário." Numa escala de um a 10, dá 6,5 à justiça portuguesa.

Ano e meio depois do fecho de 21 tribunais, estamos de novo à espera de mudanças. Não é cedo para fazer alterações às alterações?
A reorganização judiciária foi executada num tempo muito curto, e por isso teve dificuldades de implantação. Tivemos quatro meses para fazer o que devia ter sido feito num ano, mas não foram alterados os timings [da reforma] para entrar em funcionamento a 1 de Setembro [de 2014]. O que implicou que tivéssemos tido experimentações quase quotidianas.

Uma reorganização desta dimensão implica um tempo mínimo de dois a três anos para verificarmos as suas virtualidades. Mas as circunstâncias do funcionamento neste primeiro ano e meio permitiram ao Conselho Superior da Magistratura identificar questões prioritárias nas visitas que fez às 23 comarcas do país, permitindo-nos formular sugestões de ajustamento. Para pequenos ajustamentos não é cedo demais.

Reabrir tribunais é um pequeno ajustamento?
Essa é outra questão. O que penso que está pensado é um reordenamento das secções de proximidade. Significa que alguns tribunais de menor dimensão que não passaram a secções de proximidade possam ser reinstituídos como secções de proximidade. Isto é, com uma base logística mínima que permita acompanhar as pretensões dos cidadãos e, sobretudo, em circunstâncias de maior dificuldade de transportes públicos, permitir a realização de actos judiciais. [A reabertura] dependerá muito de um estudo que está a ser feito não apenas da geografia e das distâncias, mas sobretudo das redes de transportes.

A reforma afastou ou não as populações da justiça?
É central a questão da proporcionalidade entre meios e possibilidades.

Entendeu-se em vários casos que o movimento dos tribunais era tão escasso que não justificava a sua manutenção. Por razões de racionalidade financeira e de relação custo/benefício. Não digo que as populações não tenham razão. Se eu fosse habitante duma pequena circunscrição, sentir-me-ia muito triste por deixar de ter o tribunal da minha terra – mesmo que nunca o utilizasse. Tem a ver com a coesão institucional.

Os equilíbrios entre as necessidades, as possibilidades e o movimento processual podem não ser compatíveis com os limites da coesão institucional. Isso foi sentido por algumas populações, mas esbateu-se com o tempo. As pessoas vão-se habituando às novas circunstâncias.

Mas é ou não cedo para alterar a reforma?
Simpatizo com a ideia de reaproximar uma instituição mínima dos cidadãos, contribuindo para a justiça de proximidade. Sendo possível e viável instalar instâncias de proximidade em substituição de tribunais de comarca extintos, isso seria um passo relevante.

Já falou com a ministra sobre isso?
Conversámos algumas vezes. E isso implica, neste modelo de organização – a ministra está bem ciente disso – a criação de meios de suporte logísticos que permitam a deslocação dos juízes às secções de proximidade: carros, transportes.

Os juízes sempre se deslocaram em serviço nos seus carros pessoais.
Gostaria que isso não acontecesse. Além dos riscos que cada um deles corre, é também simbólico: não gostaria de ver os magistrados a conduzir o seu próprio carro. Convém que as coisas mudem. O funcionamento das secções de proximidade depende em boa parte da disponibilidade e empenhamento dos magistrados em servir os cidadãos.

O programa do Governo fala na realização de julgamentos em todos os concelhos.
Suponho que há aí uma interpretação errada ou um excesso de linguagem. Nunca se pensou em instituir secções de proximidade em municípios que nunca tiveram tribunais.

"O país não aguenta um jogo de reformas"

Pode dar exemplos de comarcas onde a reforma tenha funcionado bem e mal?
Há comarcas com uma geografia e uma demografia mais adaptadas ao modelo implantado, como a da Madeira. A base do modelo é o distrito – uma divisão administrativa que teve a sua época – e isso acaba por provocar desequilíbrios. Tive sempre dificuldade em compreender por que se abandonou o modelo adoptado nas comarcas experimentais, antes de se ter efectuado sobre ele a prova do tempo. Não foi feito um estudo seguro sobre os resultados dessas três comarcas-piloto. Mas o que está, está. O país não pode andar a jogar um jogo de reformas na justiça, não aguenta. Foi uma oportunidade perdida a reorganização judiciária dos anos 1992/93, dos tempos de Laborinho Lúcio, que ficou a meio.

A ministra está a fazer esse jogo?
Não.

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"Há demasiada legislação. Isso é o que mais me preocupa: legisla-se sobre tudo e mais alguma coisa" Rui Gaudêncio

O que Francisca Van Dunem está a fazer é afinar a reforma de Paula Teixeira da Cruz?
Sim, a fazer os ajustamentos que as circunstâncias impõem. É uma boa solução. Veremos se a prova do tempo nos vai obrigar a outro tipo de modificações.

Seria necessário um pacto de regime para evitar esse jogo de reformas?
A justiça é uma questão fundamental de Estado. Em relação às grandes linhas, não vejo diferenças acentuadas no pensamento político português e da ciência política. Tanto é assim que os grandes documentos normativos da justiça têm tido unanimidade parlamentar. O consenso da justiça está aí.

Não aconteceu com esta reforma.
Estou a falar nos grandes documentos normativos modelares.

Já olhou para as 120 medidas para a justiça anunciadas por Van Dunem?
Olhei para as 30 que dizem directamente respeito ao funcionamento dos tribunais e vi que eram medidas imediatas, de simplificação, para tornar mais ágil os procedimentos, como a gestão processual e a comunicação. Se puderem ser feitas serão bem vindas.

"Se puderem"...?
Algumas implicam acertos tecnológicos, mas suponho que tenhamos capacidade de os fazer.

Vai submeter-se ao choque tecnológico prometido pela ministra?
Já estamos submetidos! O que há a fazer é melhorar condições e proceder de forma a que esses instrumentos não sejam um fim em si mesmos, mas auxiliares úteis. Há circunstâncias próprias da natureza do sistema judicial que, pelas suas exigências de rigor, certeza e segurança, exigem cuidado no uso da tecnologia.

Vai acolher a plataforma informática Citius aqui no Supremo?
O Citius vai ser alargado aos tribunais superiores e há-de chegar ao Supremo. Se for útil agrada-me, se não for, não.

A que se devem as suas reservas em relação às novas tecnologias?
Não tenho descrença nenhuma, mas há simplificações que as tecnologias permitem que o ADN da justiça dificilmente suportaria, como nos casos das notificações e citações. É preciso saber onde parar, porque as tecnologias permitem tudo e mais alguma coisa.

Mas aquilo que me preocupa verdadeiramente é o conteúdo da comunicação. Tenho recebido queixas e lamentos de muitos cidadãos que recebem uma comunicação do tribunal – seja por que meio for – e não compreendem o que lá está escrito. Mais do que com os instrumentos tecnológicos, estou preocupado com a simplificação da linguagem: os cidadãos que recebem uma comunicação do tribunal em casa têm de perceber o que aquilo quer dizer.

Alguns dirão que pertence ao período jurássico...
Não pertenço, a tecnologia tem grandes vantagens. Mas não sou um fanático primário de tecnologia. Se for útil, tudo bem.

E quando se interroga um arguido à distância?
Esse é um problema seriíssimo, quando se retira o contacto humano. Vejo com muita preocupação – e não estou sozinho – o uso da videoconferência e outras tecnologias desse tipo: nos julgamentos, são para usar em circunstâncias excepcionais. Porque fica muita coisa por ver: o ângulo de visão condiciona o que vemos – o gesto, a expressão, o modo de dizer. Outra coisa que me preocupa muito é o uso desta tecnologia nas questões de família, ligadas às responsabilidades parentais, quando tem que se ouvir um menor e os pais. São pessoas que estão sempre em grande sofrimento emocional. Precisam de conforto – e a videoconferência não o permite.

Mas se os tribunais ficaram mais longe das populações, a tecnologia não se torna ainda mais necessária?
Um dos ajustamentos que sugeri é a reconformação de algumas competências dos tribunais de família e, nalgumas situações difíceis do interior, haver a possibilidade de essas competências passarem para os tribunais locais, como já sucede em três comarcas.

"O nosso sistema responde bem"

É aceitável ter arguidos em prisão preventiva durante um ano, como prevê a lei portuguesa?
Depende muito de cada sistema. O essencial das garantias está na nossa Constituição.

Mas é aceitável ficar com a vida em suspenso durante tanto tempo? Portugal já foi condenado por isso pelo Tribunal dos Direitos do Homem, mesmo antes de haver um caso célebre como o de José Sócrates.
Não é assim tanto quanto se diz. O nosso sistema, apesar de tudo, responde bem, com todo o rigor dos seus critérios e com todos os controlos judiciais, a todas as exigências constitucionais e europeias. Não devo pronunciar-me sobre essas questões senão em termos gerais. E o nosso sistema tem todas as garantias que permitem responder às exigências das convenções internacionais. Agora há coisas que são complicadas. Quando oiço falar em relatórios internacionais, é preciso saber quais as fontes em que se baseiam e respectiva fiabilidade. Não podemos aceitar de forma acrítica o que vem nesses documentos.

Acha portanto aceitável ficar um ano preso preventivamente?
Não sei se é aceitável ou não. Desde que a lei o permita e todas as garantias judiciais tenham sido dadas, não posso dizer mais nada sobre isso.

"Não é a justiça que faz dano à economia, é o contrário"

Numa escala de um a dez, como classifica a justiça portuguesa, sendo dez o ideal?
É uma pergunta difícil! Sinto quase todos os dias – e isso causa-me desconforto – que as percepções dos portugueses acerca das instituições judiciárias são profundamente injustas. Conhecendo o sistema como conheço, não consigo encontrar justificação racional para isso.

Até o seu vice-presidente no Conselho Superior da Magistratura, que acabou de tomar posse, se queixou da lentidão dos tribunais...
Ele não disse nada disso. Disse é que era necessário melhorar sempre. A justiça não funcionar tão bem como desejaríamos não significa que funcione mal.

Isso é como o copo meio cheio ou meio vazio.
Não, é apenas isto: as críticas são piores hoje do que há 20 anos, quando o sistema judicial tinha menos capacidade de resposta. É claro que há alguns nichos de morosidade.

Nichos? Os tribunais administrativos estão entupidos de processos.
Não falo disso, porque não tenho responsabilidades nessa área. Naquela em que tenho, há um seriíssimo problema de gestão relacionado com as acções executivas, ou seja, a cobrança das dívidas. E este não é um problema da justiça, mas da economia.

Salvo situações patológicas, ninguém é devedor porque quer – mas porque não pode pagar. Estamos, nas acções executivas, limitados à penhora de ordenados, imóveis ou contas bancárias. O que nos fica são os pobres dos devedores que não têm por onde fugir ao desconto nos salários. E esses, normalmente, se não pagam não é por não quererem. Mas também temos de ter respeito pelos credores.

Como se resolve isto?
Melhorando a economia. Não é a justiça que faz dano à economia, é o contrário: é a economia e a sua situação desfavorável que causa tensões brutais sobre a justiça.

No Programa Nacional de Reformas do Governo a questão é colocada ao contrário: a justiça surge ao "serviço da competitividade".
São, com todo o respeito, declarações genéricas, que têm de ser testadas com a realidade. Estou à espera que as pessoas que fizeram essa afirmação me a expliquem. 

Como é que uma empresa investe em Portugal se sabe que vai demorar anos a dirimir um conflito em tribunal?
Quem disse que demora anos? Nalguns casos, se não houver expedientes dilatórios, talvez até se resolva mais depressa num tribunal do que através dos meios arbitrais [extra-judiciais] de resolução de conflitos. É preciso desconstruir mitos: a lentidão da justiça portuguesa não pode ser invocada como pretexto para ameaça à economia. Mas um litígio relacionado com um contrato relativamente complexo não se resolve em três meses.

A verdade é que, tanto à esquerda como à direita, todos falam na "crise da justiça" e na sua falta de celeridade.
Eu queria ver a expressão "celeridade" expulsa do léxico da justiça. Uma justiça célere não é justiça. A justiça tem que ser proferida num prazo razoável, que satisfaça os interesses das pessoas. Existe um sound que está na cabeça das pessoas que se associa à falta de leitura dos documentos de trabalho. São modas. O único documento em que encontro a palavra justiça associada à celeridade não é nenhuma convenção internacional nem nenhum tratado, mas a Constituição portuguesa. E eu posso discordar do léxico constitucional.

Foi a ultrapassagem desse "prazo razoável" que fez o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenar o Estado português, por vezes com pesadas indemnizações.
Exactamente. Mas esses casos não foram centenas, não exageremos. Estou a fazer um levantamento a nível nacional dos processos em tribunal com uma duração superior ao razoável. Se os tempos de decisão se estenderem para além do razoável criam um défice de qualidade.

Tem dados desse levantamento?
Lá voltamos às acções executivas. O sistema está completamente esmagado por elas. A maior parte destas acções só estatisticamente estão nos tribunais, porque estão fora, no âmbito das competências processuais dos agentes de execução. Todas as taxas de resolução de processos que recebi nos últimos relatórios semestrais são superiores a 100%: estão entre 119% e 131% na primeira instância. Não posso deixar de estar satisfeito.

As acções executivas deviam sair das estatísticas?
Isso não resolve muito, mas quando fazemos comparações a nível internacional, criam uma ideia muito distorcida da realidade. Mas eu gostaria que as coisas corressem ainda melhor e creio que estamos no bom caminho.

Acabou por não dar uma nota à justiça...
Numa escala de um a dez, e aplicando os critérios do relatório da União Europeia Justice Scoreboard, eu daria um 6 ou 6,5. Nalguns itens teríamos 9, e nalguns 4, no mínimo.

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"Eu queria ver a expressão "celeridade" expulsa do léxico da justiça" Rui Gaudêncio

Poder das "reguladoras põe em causa Estado de direito"

É a favor das metas de produtividade para os juízes?
As metas não são para os juízes, mas para os tribunais e para os serviços. Como instrumentos de gestão, podem ser muito úteis.

Já fez questão de dizer, alto e bom som, que pressente "intenções ideológicas" por trás da lei-quadro das entidades reguladoras, como o Banco de Portugal. E falou na "utopia neoliberal" aplicada à justiça. Isto não contraria a neutralidade quase asséptica a que associamos os juízes?
O que disse foi que não iria discutir as intenções ideológicas por trás dessas normas. O que me preocupa é a manutenção da integridade das garantias do Estado de direito.

Que está ameaçada...?
Coisa muito diferente não disse Gomes Canotilho há poucos dias, numa entrevista no PÚBLICO. Em situações complexas do domínio da finança e de sectores económicos relevantes tem-se sentido essa intenção ideológica, e a lei-quadro das reguladoras tem elementos nesse sentido, com disposições que me colocam algumas dúvidas.

A Constituição diz que o monopólio da função jurisdicional é dos tribunais – e aqui estou a falar dos tribunais do Estado mas também dos arbitrais. A lei-quadro diz que compete às entidades reguladoras dirimir questões específicas entre os próprios regulados. Ora a intervenção da administração não deve resolver problemas entre cidadãos.

Está a violar-se a Constituição?
Eu não queria ir por aí. Se calhar está. Ora a jurisdição dos tribunais é um princípio estruturante do Estado de direito. Quando a própria lei atribui a entidades administrativas funções de dirimir conflitos entre entidades privadas, estas passam a exercer funções jurisdicionais que competem aos tribunais. A partir daí posso pressentir, no domínio dos princípios, que está a ser colocado em causa um princípio fundamental do Estado de direito. Estou a analisar competências, e não a qualidade com que elas são exercidas. Esta pode ser uma nova separação de poderes.

Há uma confusão de papéis?
Entre administração e jurisdição.

Como quando o Banco de Portugal averigua um caso e é também ele o responsável pela aplicação das multas?
É isso. Eu não digo que o não possa fazer, uma vez que a lei o permite. Deixo simplesmente um alerta para as consequências que isso pode ter. No que diz respeito às competências sancionatórias destas entidades, não sou só eu que o digo: ainda há pouco tempo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o regulador italiano correspondente à nossa Comissão de Mercados de Valores Mobiliários por causa disso. E o que disse é que um processo desta natureza, com sanções pecuniárias de tanta gravidade, tem de ser resolvido pela justiça. Ou seja, as contra-ordenações não foram pensadas para milhões de euros.

Se forem multas de cem euros não há problema?
Não há. Não pode ser a mesma entidade a fazer a norma, a investigar preventivamente uma suposta infracção, a ter, durante a investigação preventiva, o dever de colaboração do regulado que está a ser investigado – que tem de fornecer elementos que possam contribuir para a sua auto-incriminação – e, por fim, a condenar. Isto afecta princípios do processo equitativo.

O que fez perante esta análise?
Nada posso fazer senão alertar os cidadãos. Tenho dúvidas em relação à conformidade constitucional e convencional desta lei mas não tenho competências processuais autónomas.

As entidades reguladoras são inconstitucionais?
Não disse isso. Algumas das suas competências é que me suscitam problemas de constitucionalidade, como no domínio sancionatório e no domínio da jurisdição. E isto não é um problema português. O défice de controlo jurisdicional e parlamentar e das actividades das novas agências europeias preocupam muita gente. É preciso reequilíbrar os poderes. Delimitar os papéis e pensar numa nova forma de intervenção judicial – que me parece curta, na forma como está neste momento prevista. Com novos instrumentos processuais de intervenção judicial.

É nisto que está a pensar quando fala das "utopias neoliberais"?
Nisto e na alegada falta de competência técnica dos juízes para lidar com matérias demasiado complexas. A isso chamo a tentativa de expulsão do juiz da decisão sobre as matérias. Fui das primeiras pessoas a alertar para isto em Portugal e gostaria de ver o tema discutido, em nome dos princípios fundamentais do Estado de direito, que poderão ser questionados se começarmos a deixar que os princípios estruturantes sejam afectados.

Parece o léxico dos radicais de esquerda...
Abordei o tema no discurso de abertura do ano judicial. É a minha interpretação dos factos. Estamos num momento de supertécnica, de concentração de poderes e de outra separação de poderes. E os novos poderes têm sempre a tentação de expulsar o juiz.

Qual é o risco de os especialistas substituírem os juízes?
Quando se trata de dirimir litígios interessa-me mais a transversalidade dos valores do que a unilateralidade do conhecimento técnico, que tem o risco de afunilar a decisão em determinado sentido. Quero alguém que pense na presunção de inocência, na transmissão dos valores, no princípio do contraditório, nas diferentes posições que podem ser defendidas mesmo em termos técnicos. Alguém que esteja numa posição de terciaridade e alteridade.

É contra os meios alternativos de resolução de litígios?
Não, desde que sejam aceites voluntariamente pelos interessados – o que nem sempre sucede. Os meios alternativos e a justiça informal são assuntos que a Europa discute há 30 anos, e em relação aos quais já regrediu nalguns casos. Não gosto muito de embarcar em modas, aí sou jurássico!

Há excesso de ideologia na justiça?
Se fala de ideologia sobre o judiciário, claro que tenho a minha própria ideologia. Não gosto de utopias neoliberais na justiça.

Como se define politicamente?
Não sei se com isto vou violar o meu dever de reserva, mas nos meus anos de faculdade nunca alinhei nas modas daquele tempo, nos meados de 1960/70. Não tinha consciência política. Participei na crise de 69, embora não tenha tido uma intervenção por aí além. Fiz greve aos exames. Mais tarde sempre me aproximei dos ideais da social-democracia alemã – que agora está em séria crise, razão pela qual fiquei ideologicamente órfão. Ainda há pouco tempo li um texto de Tony Judt com o qual me identifico sobre os difíceis caminhos da social-democracia.

"Legisla-se sobre tudo e mais alguma coisa"

Em Portugal há uma justiça para ricos e outra para pobres?
Isso é um chavão. O que significa isso?

Que posso interpor recursos ad aeternum se tiver dinheiro para isso.
Isso não um problema da justiça, mas da sociedade. E a justiça não é um nivelador social. O Estado tem de fornecer o acesso ao tribunal em igualdade de circunstâncias. Os recursos apenas podem fazer os processos durar mais ou menos tempo, mas não alterar a natureza das decisões. Nunca vi um tratamento diferenciado entre quem tem e quem não tem possibilidades. Outra coisa é se há quem tenha melhor capacidade de exercer os seus direitos. Mas nem sempre quem a tem consegue decisões judiciais que lhe sejam mais favoráveis. E os magistrados estão atentos a isso.

Legisla-se mal em Portugal?
Há demasiada legislação. Isso é o que mais me preocupa: legisla-se sobre tudo e mais alguma coisa. Normalmente, os grandes diplomas são trabalhados com muito cuidado. Mas vivemos numa sociedade hipertécnica e nos diplomas muito técnicos a formulação normativa pode não ser a mais adequada. Quando a lei resulta de compromissos difíceis no Parlamento, como em questões novas, que envolvem assuntos fracturantes, a lei resulta frágil ou pouco clara.

Os advogados deviam renunciar à profissão enquanto exercem funções de deputados?
Tirando os magistrados ou militares, que têm direitos limitados, qualquer cidadão deve ter acesso ao cargo de deputado. Não se pode estabelecer uma incompatibilidade geral e abstracta: dependerá das situações concretas. Nesses casos, caberá ao deputado suscitar o seu impedimento.

As linhas vermelhas

A justiça europeia está preparada para enfrentar o fenómeno do terrorismo? Há uma doutrina, intitulada direito penal do inimigo, que defende que não lhes devem ser dados os mesmos direitos que aos outros criminosos.
Preocupa-me muito que os povos sejam condicionados na sua liberdade quotidiana. O direito penal do inimigo, que é muito apelativo em termos comunicacionais, traz os limites da punibilidade a fases muito anteriores do processo, como os actos preparatórios do terrorismo ou a simples intenção. E aumenta exponencialmente as penas. Por outro lado, traz uma limitação extrema das garantias processuais do chamado inimigo. A esmagadora maioria da doutrina é violentamente contra este tipo de abordagem.

Mas a punição dos actos preparatórios já existe.
Na legislação europeia contra actos terroristas, que transpusemos, houve um alargamento da tipicidade, como o financiamento ou a noção de actos preparatórios. Mas isso foi feito não na perspectiva de adesão ao direito penal do inimigo, mas porque se considerou que era necessário para a prevenção do terrorismo. Também houve agravamento das penas, mas continuamos a ter limites inultrapassáveis: o máximo da pena são 25 anos.

Quanto às garantias processuais, no momento em passa a ser do sistema judiciário o combate ao terrorismo – ou seja, quando existem factos que possam constituir crime – toda a doutrina portuguesa tem sido unânime: a redução dos direitos processuais do arguido seria uma afectação inadmissível do Estado de direito democrático.

Há uma linha vermelha: o respeito pelo artigo 17.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Na equação segurança versus liberdade, onde está o ponto justo de equilíbrio?
No respeito pelos direitos processuais do arguido, na administração das provas com proporcionalidade e, no limite dos limites, nas condições de defesa da democracia em função do respeito pelos direitos fundamentais.