O Presidente e o lobo

Se o PR – este ou qualquer outro – abusar das palavras, um dia que delas precise mesmo, em situação de grave necessidade, talvez os cidadãos lhe não prestem a devida atenção.

Uma história que, desde a infância, retive na memória é a daquele jovem pastor que se divertia a assustar a aldeia com gritos frequentes de “aí vem lobo”. A aldeia alvoroçava-se, partia em defesa do pastor e do rebanho, mas depois apercebia-se de que se tratava de falso alarme. O desenlace é conhecido: um dia havia mesmo um lobo, mas todos pensaram que era mentira. Ninguém acudiu e o bicho empanturrou-se com um par de ovelhas do rebanho em fuga.

Hoje sei que esta história popular tem várias versões e circula por universos culturais que vão muito além do meu modesto livro da terceira classe. E sei também que não se extinguiram os ensinamentos daquele relato da minha idade infantil. É ele que me vem à memória sempre que, com quotidiana regularidade, ouço e vejo intervenções do Presidente da República.

Talvez um dia alguém consagre um sisudo estudo ao fenómeno que, com a intensidade de um ciclone açoriano, tem assolado o espaço mediático português, desde que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse como Presidente da República. Não há dia em que o nosso PR não surja nas televisões e nas rádios (e depois, nos jornais) a declarar, a comentar, a discursar, a dissertar, a responder e a opinar. Mais: à hora a que escrevo este texto, acabo de ver e ouvir o PR a noticiar. Assim mesmo: foi o PR quem noticiou que um deputado português (que é, afinal, uma deputada) deixará o Parlamento Europeu para ocupar um alto cargo no Banco de Portugal. O PR apressou-se a acrescentar que essa não é matéria da sua decisão, mas é assunto de que, evidentemente, ele fala, depois de, aliviando o trabalho dos jornalistas, noticiar.

O PR tem um estilo, como os seus antecessores também o tiveram. Vai nesse estilo muito do vezo de comentador que o Professor Marcelo cultivou anos a fio, naquela função que rasgou a estrada lisa que por onde ele transitou até à Presidência da República, sem contracurvas traiçoeiras nem multas por excesso de velocidade. Os outros candidatos ficaram, é claro, na beira da estrada.

Só que o presidente eleito parece ter tomado à letra a estafada expressão que diz ser ele “presidente de todos os portugueses”. E a todos deseja falar, por junto e em separado, através da comunicação social. A professores e a alunos, a militares e a civis, a jovens e a idosos, a clérigos e a leigos, a trabalhadores e a empresários, a estudantes e a futricas, à chuva e ao sol, na rua e no Palácio de Belém. Foi neste último, na vistosa Sala das Bicas, que o PR fez uma sentida declaração de homenagem, quando faleceu um conhecido ator e produtor de televisão. O acontecimento foi triste, todo o país chorou por três dias o passamento – e o PR não podia deixar de se associar ao desgosto. E falou. Depois disso (e já antes), não tem havido desastre natural, proeza desportiva, incidente social, sobressalto económico, nomeação, demissão ou criação artística que não mereça o incisivo comentário presidencial.

Faz parte daquilo a que chamo estilo presidencial um certo uso da palavra. O general Eanes falava pouco e normalmente numa pose esfíngica que nos deixava a pensar: será que entendi? O Dr. Mário Soares não discursava: conversava amigavelmente com os cidadãos. O Dr. Jorge Sampaio elaborava um discurso onde às vezes sobrava a retórica, mas era, a meu ver, quem melhor fazia (literalmente) uso da palavra. Já o Prof. Cavaco Silva, quase sempre flanqueado pela ex-primeira dama e por entre um ou outro esgar, debitava um discurso em que cada vocábulo era sabiamente martelado. Agora temos de tudo um pouco e ainda, quando é preciso, mais do que isso.

Leio na Constituição (e o nosso Presidente conhece-a como poucos) que o PR “representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas”. Para bem cumprir estas severas funções, às vezes o PR tem de falar. E convém que seja ouvido. Dificilmente o será, contudo, se insistir em banalizar as palavras. Vale a pena lembrar um admirável texto de José Saramago sobre isto mesmo: “As palavras”, escreveu Saramago, “são boas”. E acrescentou: “As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas.” E assim por diante.

O caso é o seguinte: se o PR – este ou qualquer outro – abusar das palavras, um dia que delas precise mesmo, em situação de grave necessidade, talvez os cidadãos lhe não prestem a devida atenção. As suas palavras estarão gastas e debalde alertarão para algum lobo que ameace. Convém lembrar que, além das palavras, há o silêncio e os seus sábios sentidos. Volto a Saramago: “O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar.”

Venha, então, o tal estudo académico (que o PR não deixará de comentar…) sobre discursos presidenciais no espaço mediático. O título será certamente ponderoso; o subtítulo é fácil de adivinhar: o Presidente e o lobo.

Professor da Universidade de Coimbra

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