Mais para lá do que para cá

O Brasil está reconhecível; os brasileiros não

Regressado recentemente ao Brasil após uma ausência de cinco anos, logo confirmei o que todos os conhecedores e amigos deste país dizem agora: o Brasil estava reconhecível; os brasileiros não. A paisagem moral está extremada. Os opositores do governo não se opõem ao governo no sentido político do termo; antes odeiam Dilma Rousseff, Lula e o PT vomitando sobre eles todos os vícios machistas, racistas e classistas ainda alojados na psique coletiva de parte da sociedade brasileira como o petróleo por debaixo do pré-sal. Do outro lado, também não há bem quem defenda o governo, mas só uma instintiva contra-reação sem horizonte político unida pela necessidade de proclamar que “não vai ter golpe”.

Este não é o Brasil dos últimos anos, quando dois presidentes — Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva — mudaram para muito melhor a economia e a sociedade do país, a partir de uma política que sempre pareceu uma catástrofe adiada. Mas é um certo Brasil do passado, que vem da deposição de João Goulart, da demissão de Jânio Quadros e do suicídio de Getúlio Vargas. O Brasil incapaz de segurar um Presidente ou de fazer a substituição de partidos no poder sem caos.

Dilma, a tecnocrata reeleita após um primeiro mandato aceitável, ainda alegou tentar a reforma do sistema político no início do segundo mandato — o que seria difícil mesmo sem a enxurrada de escândalos que continuamente revelou um congresso venal, partidos sem ideologia e canais de financiamentos ramificados pelas empresas dos estados e da federação. Poucos se salvam nesta tragédia: se é verdade que nos senadores e congressistas da oposição abunda o discurso agressivo e mesmo saudosista da ditadura, também os aliados do Partidos dos Trabalhadores insuflam a paranóia anti-golpista para atacar as investigações do judiciário.

O que há de comprovado até agora, mesmo com a famosa delação premiada de Delcídio do Amaral, que até há pouco tempo liderava a bancada governista no Senado, continua a não atingir Dilma com qualquer indício criminal. Já as alegações em relação a Lula, relacionadas com um triplex num aparthotel que ele garante ter desistido de comprar e estadias numa chácara de amigos, estão longe de poder justificar o tratamento de criminoso que lhe é votado por quem o odeia na sociedade brasileira (pergunto-me que diriam se Lula possuísse os 35 milhões de euros em 21 propriedades que esta semana se revelou que Tony Blair adquiriu depois do seu mandato).

Nada se assemelha mais a uma confissão de culpabilidade, porém, do que a própria ideia a que o PT se agarrou com todas as forças nos últimos dias: a de fazer Lula ministro no governo de Dilma. Um absurdo grave em todos os casos: se o papel de Lula for simbólico, ficará patente que se tornou ministro para impedir ou retardar as investigações; se Lula vier a ser um super-ministro, como se diz, é o PT e os seus aliados que acabam fazendo o golpe de que acusam os outros, pois será ele o Presidente de facto sem ter sido eleito.

O movimento histórico que levou “Lula lá” — ao Palácio do Planalto — mudou o Brasil para muito melhor. O erro histórico que será voltar a levar “Lula lá” por puro expediente político arrisca-se a ser o passo que faltava para mergulhar o Brasil no caos.

Historiador, fundador do Livre

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