Jipes da Lousã: pode o Estado impedir um milionário de ser um filantropo?

A luta contra o estigma e o preconceito é também uma luta civilizacional.

Há aproximadamente 16 anos, um industrial da Lousã, Sr. Jorge Carvalho, decidiu, no ocaso da vida, oferecer o mais pequeno dos jipes da Honda aos seus trabalhadores (cerca de 150) como forma de reconhecimento pelo labor e dedicação à empresa. Na linha de seu pai, seguiu-lhe o exemplo de benemérito, numa postura cívica de solidariedade muito apreciada e louvada pelos seus conterrâneos durante dezenas de anos. Como é público, diversas instituições seriam generosamente beneficiadas, de que são exemplo ARCIL (Associação Para A Recuperação De Cidadãos Inadaptados da Lousã), Bombeiros Voluntários e Clube de Rugby.

À moda das alcatifas dos anos 70 do século XX respondeu a sua fábrica têxtil, de cariz familiar, com inovação e empreendedorismo de uma pujante produção, impondo-se rapidamente no mercado nacional e internacional, criando a sua própria marca: Alcatifas da Lousã. Homem de teres e haveres acumulados, sem filhos por herdeiros, determinou alocar uma parcela da sua fortuna pessoal à compra dos referidos jipes. Tal desejo e pretensão manter-se-ia persistentemente até à sua morte em 2005. Este aspeto é altamente relevante porquanto sendo um doente bipolar (e não conforme ao termo pejorativo maníaco-depressivo, antiga denominação desde o final do século XIX até meados do século XX) defenderia ano após ano, com veemência, a sua opção de filantropia, de acordo com múltiplos testemunhos. Embora doente, sempre aceitou tratar-se com a sensatez da necessidade de ajuda médica, com acompanhamento regular psiquiátrico. Nos últimos anos de vida não foi internado em Unidade Psiquiátrica, nem voluntaria nem compulsivamente, ao abrigo da Lei de Saúde Mental, o que poderia fazer supor um agravamento do seu estado de saúde.

A doença bipolar é classicamente uma doença do humor que cursa por fases: umas melancólicas (mais frequentes, duram meses), outras eufóricas (menos frequentes, duram semanas) e ainda outras ditas normais (felizmente a maior parte do tempo). As medicações actuais conseguem estabilizar ou mitigar a força da doença, mas como acontece com a generalidade das patologias do foro psiquiátrico existem graus de severidade. Por analogia, toda a gente percebe que existem tons de verde ou tons de azul: uns mais escuros, outros mais claros. O mesmo ocorre com os doentes bipolares. O que está em causa não é o diagnóstico da doença em si mesmo mas antes os limites que cerceiam a capacidade de se autodeterminar como cidadão protegido pela Lei que, supostamente, deveria respeitar a sua vontade.

Coloquemos agora uma outra analogia, um cenário hipotético: Um milionário coleccionador de Ferraris decide doar 2 carros da sua frota de 10 para uma instituição de caridade com vista à obtenção de fundos. Pergunta: Trata-se de “prodigalidade excessiva” desfazer-se de 20% desse património?

À semelhança de casos similares, estão em causa os direitos civis das pessoas com doenças psiquiátricas. A luta contra o estigma e o preconceito é também uma luta civilizacional. Seria imperativo que a Ordem dos Médicos e o seu Colégio de Psiquiatria, bem como a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, pudessem ter uma palavra sobre decisões judiciais perplexas, controversas e polémicas, que não respeitam a vontade dos doentes. Afinal, pode o Estado impedir um milionário de ser um filantropo na sua própria terra, a partir dos seus próprios bens?

Carlos Braz Saraiva, psiquiatra, Coimbra

Fernando Medeiros Paiva, psiquiatra, Porto

José Manuel Jara, psiquiatra, Lisboa

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