Há muito a fazer na Justiça

È difícil crer e aceitar. Marisa Matias, candidata presidencial, é quem o diz. Numa visita a um estabelecimento prisional, constatou a presença de uma cidadã, já com 80 anos, a cumprir pena de seis anos de prisão. A idade impressiona e suscita solidariedade acrescida.

O mais insólito é que fora condenada em 1996, em definitivo. Levaram-na 20 anos depois da sentença para cumprir a pena de prisão. Não se vislumbra que ressocialização se pretende e consegue mais de 20 anos após a prática de um crime. O decurso muito prolongado do tempo esbate a função de recuperação social da pena. Até a natureza de sanção da mesma. Fica uma mal disfarçada ideia de revanche social. O cumprimento meramente formal da lei.

Como uso, ninguém tem nada a ver com isso. Passou a quem é competente para mandar cumprir a decisão condenatória. A quem é competente para executar a ordem. O processo andou pelas estantes do tribunal. Alguém mais zeloso viu “aquilo”. Cumpriu-se à pressa o que devia ter sido cumprido só há 20 anos! A ninguém ocorreu, durante aquele tempo todo, dar uma fiscalização aos processos. Aos pendentes e aos que estão findos. Mas não cumpridos na íntegra.

Vão dizer-nos que há milhares de processos para cumprir/executar. Que se trata de um caso isolado. É verdade. A cidadã agora presa não tem nada a ver com isso.  Ou ninguém explica coisa nenhuma. Num Estado democrático não pode suceder um só caso como este. Trata-se de desrespeito frontal aos princípios fundamentais do Estado de Direito cujas causas devem ser apuradas.

Salvo um ou outro caso, como o referido por Marisa Matias, os estabelecimentos prisionais deixam tudo a desejar. Estão a abarrotar. Têm carências de toda a ordem. Não mora lá a dignidade dos presos. A Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) está cansada de o dizer. Em vão. Ninguém do poder se tem até agora preocupado com a dignidade dos presos. Preso fica para ali abandonado de tudo e todos, como se a cadeia não integrasse o Estado de Direito. Há muitos anos que se aguardam melhorias/humanizações nesses estabelecimentos. Bem podemos esperar sentados. Muito do que lá se passa vai sendo publicitado pela APAR. Aceita-se que a nova equipa do Ministério da Justiça tenha em conta o submundo prisional. Que implementará medidas adequadas que, ao menos, minimizem o sofrimento dos presos. Já basta a perda da liberdade. Tudo o mais é excesso e abuso. O Estado de Direito e Democrático também mostra a sua superioridade sobre o autoritarismo na forma como trata os presos. Não tem o direito de os olhar e tratar como párias. 

Esperava-se, no mínimo, um daqueles inquéritos em que, desta vez, se analisem as causas, se informe e critique. Não para dissimular interesse e preocupação. Sim para se assumirem as medidas possíveis e adequadas.

Marisa Matias acrescentou algo que já todos constatámos. A Justiça não é igual para todos. Há muito a fazer na Justiça. Para lá das muralhas do cárcere, também vigora o Estado Democrático e de Direito. Sem liberdade, os presos conservam todos direitos civis e políticos. E isso não é tido na devida conta. Devia sê-lo. 

Procurador-Geral Adjunto

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