Terra brava

Butcher’s Crossing é a prova de que John Williams é mesmo um grande escritor.

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Custa a entender como o talento de John Williams pode ter sido tão esquecido — e durante tanto tempo

Após décadas de esquecimento no seu próprio país, o escritor norte-americano John Williams (1922-1994) viu reconhecido o seu talento na Europa já neste milénio, quando a escritora Anna Gavalda traduziu para francês Stoner, o romance sobre um anónimo professor de inglês cuja vida se resume a um curto parágrafo sem muita acção. Uma existência vulgar para o colectivo que o rodeia, mas que Williams explora na sua intimidade, revelando toda a complexidade de que é feito o que se chama de banal, numa escrita sem mácula, marcada pela exigência da linguagem e da contenção. Não demorou a ser traduzido para várias línguas, a despertar a atenção da América e a ser considerado um clássico — embora no ano em que foi escrito, 1965, não tenha vendido mais de dois mil exemplares.

A curiosidade sobre John Williams ressurgiu então. Até há poucos anos, o livro mais conhecido deste escritor texano, filho de agricultores, que publicou apenas quatro romances, nunca deixou de ser professor e foi sempre fazendo poemas, era Augustus (1972), inspirado na vida do imperador romano, o único a valer-lhe um prémio numa carreira sempre discreta. A reedição de Stoner mudou tudo. O livro chegou a Portugal em 2014, criando também por cá um culto. E em 2015 John Williams voltava, já com um conjunto de admiradores a olharem com alguma suspeita o novo título nas bancas, como se Stoner fosse irrepetível. É.

Butcher’s Crossing é um livro muito diferente. No espaço, no tempo, na acção. Escrito em 1960, é apresentado como o primeiro grande romance da maturidade de John Williams. Antes, só publicara Nothing But the Night (e faltam a esta leitora elementos para avaliar esse livro de 1948, tinha Williams 22 anos). O seguinte seria justamente este western original à época, 25 anos antes de Cormac McCarthy ter publicado Meridiano de Sangue (Relógio D’Água). Lendo um e outro, percebem-se as comparações que têm sido feitas: Butcher’s Crossing remete para o ambiente negro e cru de Meridiano de Sangue, mas Williams veio antes de McCarthy e talvez agora se compreenda melhor onde foi McCarthy buscar influência, como Williams terá ido a Herman Melville. É do Melville de O Vigarista, uma das epígrafes de Butcher’s Crossing: “… quem fez de Peter, o Menino Selvagem, um idiota?”. A outra é do poeta e filósofo Ralph Waldo Emerson (1803-1882), e sobre ela parece ter alicerçado este romance: “No limiar da floresta, o homem do mundo, surpreso, é obrigado a abandonar as suas avaliações citadinas do grande e do pequeno, do sensato e do disparatado. A mochila do costume abate-se sobre as suas costas ao primeiro passo que dá nesses limites. Ali reside a santidade que envergonha as nossas religiões, que desacredita os nossos heróis. Ali descobrimos que a natureza é a circunstância que amesquinha todas as outras circunstâncias, e julga como um deus todos os homens que vêm até ela.” (in Natureza, 1936)

Se em Stoner estávamos perante o homem só, no abismo da sua solidão mais íntima, em Butcher’s Crossing temos o homem irremediavelmente só, perdendo convicções e sem saber de si, perante a natureza. O tempo da acção é 1883. William Andrews, 23 anos, deixa Boston e o terceiro ano na universidade de Harvard, atravessa parte da América e chega a Butcher’s Crossing, no Kansas, uma terra nos antípodas da sua experiência urbana. Butcher’s Crossing podia abarcar-se inteira quase num só relance: um grupo de seis edifícios toscos dividido por uma rua estreita de terra; de um e do outro lado, uma pequena porção de tendas para lá dos edifícios. William procurava naquela viagem “a terra bravia”, a “fonte e a preservação do seu mundo”. Com parte da herança de um tio, contratara os serviços de um caçador experiente e empreendera uma expedição em direcção a um sentido que sentia como “fulcral”, selvagem, mas não conseguia identificar. Caçar búfalos, trazer peles e fazer negócio eram só uma pequena parte da aventura.

O que John Williams faz em Butcher’s Crossing é mais um exercício de observação do essencial no acto de se ser humano — que justamente transforma numa linguagem próxima dessa essência. O rigor de cada palavra, de cada frase para transmitir o silêncio, a dor, o asco, a crueldade ou o desespero, a paixão e a emoção, e tudo isso modelado ou enquadrado na paisagem — seja num pequeno cubículo que serve de quarto a uma prostituta ou na montanha a 12 dias de distância dali —, é prova de que estamos perante um escritor de uma qualidade tal que custa entender como pode ter sido tão esquecido.

A expedição avança e o protagonista vai experimentando “a sensação de estar a ser absorvido, incluído em qualquer coisa com a qual anteriormente não tivera relação”. É a experiência da “terra bravia” que se assemelha à do leitor com este romance. Tão diferente de Stoner no ambiente, este Butcher’s Crossing, mas igualmente transformador. 

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