O homem que teve um minuto de silêncio quando ainda estava vivo

A história de Pierre Ndaye Mulamba confunde-se com os anos em que Mobutu esteve no poder no Zaire. O avançado levou a selecção ao Mundial, caiu no esquecimento e foi dado como morto.

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A selecção do Zaire no Mundial 1974. Mulamba é o quarto a contar da direita DR

Foram tempos mágicos, aqueles que se viveram no futebol da República Democrática do Congo, então Zaire, na década de 1970. Estava a nascer, por aqueles dias, uma dinastia destinada ao sucesso. Após os troféus obtidos nos anos anteriores, com a conquista da Taça das Nações Africanas (CAN) por parte da selecção nacional, em 1968, e os triunfos do TP Englebert (actualmente TP Mazembe) na Liga dos Campeões africanos, em 1967 e 1968, os “leopardos” eram imparáveis. Os primeiros anos da década de 1970 trouxeram mais vitórias, mas a queda seria quase tão rápida quanto a ascensão.

Liderado por um jovem chamado Pierre Ndaye Mulamba, goleador que dera nas vistas ao ponto de merecer a alcunha “Mutumbula” (predador ou assassino), o AS Vita Club tornou-se em 1973 no segundo emblema congolês a sagrar-se campeão continental. O início de 1974 iria trazer ainda mais glórias: o Zaire passeou classe na CAN e voltou a erguer o troféu, um feito que a selecção congolesa ainda não conseguiu repetir. “Mutumbula” fez jus ao nome e brilhou ao marcar nove golos, estabelecendo um recorde de golos marcados numa edição da prova que ainda perdura.

“Não faltava nada aos jogadores. Tudo era excepcional. [1974] foi, sem dúvida, o melhor ano da história do futebol zairense, o ano em que varremos tudo o que nos apareceu à frente. Mas também foi o ano em que o futebol zairense começou a sua queda. Como costuma dizer-se, é fácil chegar ao topo, o difícil é permanecer lá”, reconhecia Mulamba em 1998, numa entrevista concedida à African Soccer Magazine.

O regresso da selecção a Kinshasa foi triunfal e Mobutu, que governava o país com mão de ferro, prometeu carros, casas e dinheiro aos jogadores. Poucos meses depois, os “leopardos” partiam para o Mundial 1974, fazendo do Zaire a primeira selecção da “África negra” a chegar à fase final da competição. Mas foi na República Federal da Alemanha que Mulamba e os seus companheiros vieram a transformar-se em mártires após terem sido heróis.

O clima era de tensão entre os jogadores, que nunca tinham visto as recompensas prometidas pela conquista da CAN. O Zaire estreou-se no Mundial com uma derrota frente à Escócia (0-2). E, num ambiente irrespirável, foi goleado por 0-9 pela Jugoslávia. “Mutumbula” foi expulso logo aos 23’. “Houve alguns problemas antes desse jogo. Um dirigente fugiu com o dinheiro dos nossos prémios de jogo e ameaçámos não entrar em campo. Honestamente, tínhamos perdido a motivação. Podíamos facilmente ter deixado entrar 20 golos”, admitiu o avançado.

Após mais uma derrota (0-3 contra o Brasil), os “leopardos” despediram-se do Mundial e voltaram para casa. Mobutu não perdoou a humilhação e os jogadores daquela equipa tornaram-se autênticos párias. Alguns caíram no esquecimento, outros viram a carreira definhar: Mulamba foi impedido de transferir-se para o Paris Saint-Germain e representou o AS Vita Club até 1988, quando decidiu arrumar as botas.

Fora dos relvados e longe das atenções, passaram seis anos até que o futebol voltasse a lembrar-se do goleador: a confederação africana decidiu homenageá-lo por ocasião dos 20 anos do estabelecimento do seu recorde goleador na CAN e “Mutumbula” viajou até à Tunísia, onde decorria a edição de 1994 do torneio. Mas foi nessa altura que os problemas se agravaram. “Tive de sair do Congo. Quando voltei a casa, após ser distinguido, o governo acreditava que eu tinha recebido uma grande quantia de dinheiro. Sofri todos os tipos de pressões. Uma noite fui atacado por soldados, que me balearam na perna. Tive de sair do país para salvar a minha vida. Um dos meus filhos foi morto na confusão, e a atmosfera [no final do regime de Mobutu] fazia com que fosse impossível ficar”, recordou.

Em fuga, foi parar a um bairro pobre da Cidade do Cabo, na África do Sul. Era arrumador de carros para sobreviver. No seu país, onde Mobutu entretanto fora deposto, Mulamba era dado como morto. Ao ponto de, na CAN 1998, ter sido guardado um minuto de silêncio em memória daquele que continua a ser o maior goleador de uma só edição da prova. E foi esse o pretexto para a African Soccer Magazine ir procurá-lo. O antigo goleador conseguiu voltar ao futebol para trabalhar com equipas formadas por refugiados, foi protagonista de um documentário e voltou a ser lembrado com o Mundial 2010, o primeiro em solo africano, precisamente na África do Sul. Sem esquecer o passado, “Mutumbula” concentrava-se em viver cada dia: “Ainda choro quando penso no Mundial 1974. O facto de ainda estar vivo faz-me valorizar o simples toque de uma bola de futebol.”

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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