O fotógrafo enquanto pedra rolante

Um dos grandes fotógrafos modernistas do século XX, Nicolás Muller, esteve em Portugal, onde podia ter-se fixado. Forçado a sair de Paris com a II Guerra, encontrou em Lisboa a hostilidade da PIDE que o prendeu. Uma retrospectiva em Cascais mostra dezenas de fotografias que tirou no Norte do país

Fotogaleria
Debaixo de chuva.Portugal, 1939 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Porto. Portugal, 1939 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Afiando a foice. Hungria, 1935 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
© Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Três pessoas. Porto, Portugal, 1939 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Três homens. Marselha, França, 1938 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Tatuagem.Bordéus, França, 1939 © Archivo Regional, Madrid
Fotogaleria
Três mulheres. Porto, Portugal, 1939 © Archivo Regional, Madrid

A passagem de Nicolás Muller por Portugal no final dos anos 1930 foi meteórica. Não deve ter ultrapassado os dois meses. Mas a curiosidade por uma realidade de antanho que se apresentou à frente dos seus olhos foi suficiente para se fazer notar. Isso e uma máquina fotográfica ao peito, claro. Coisas que para a polícia política de Salazar eram armas perigosas. Tanto que no regresso de uma viagem pelo Norte do país, a PIDE fez-lhe uma espera e prendeu-o na cadeia do Aljube, em Lisboa.

Não se sabe ao certo a razão pela qual decidiram encarcerar este fotógrafo judeu húngaro relativamente desconhecido à época, mas pode fazer-se um exercício de aproximação. Depois de ter pousado as malas numa pensão no Chiado, algures entre o final de Outubro e o início de Novembro de 1939, a intenção de Muller era começar uma reportagem sobre a figura de Salazar, encomenda que lhe tinha sido feita pela France Magazine, trabalho que lhe tinha permitido fugir de uma Paris em guerra, lugar que deixara de ser seguro para um judeu exilado como ele era. Quando percebeu que jamais se aproximaria do ditador meteu pés ao caminho para tentar dar uma imagem do país tão aproximada da realidade quanto possível. Passou por Coimbra, Porto, Guimarães, Meadela, Barcelos e Póvoa do Varzim. Captou fotografias de trabalho braçal, crianças descalças, circos de rua, homens esfarrapados, rostos marcados e mulheres, muitas mulheres. Captou imagens com o máximo de “fidelidade notarial”, qualidade que, para uns, podia ser o feito mínimo desejável, mas, para outros, uma visão demasiado crua e perigosa da realidade.

O género de fotografia sem filtros que fazia parte da maneira de actuar de Nicolás Muller não agradaria ao regime, habituado que estava a domesticar todo o tipo de imagens quer se mostrassem em jornais e revistas, quer se mostrassem em livros ou exposições salonistas. Por isso mesmo, assim que pressentiu que alguém se esforçava por revelar a dinâmica do país (fosse ela qual fosse) tratou de controlar esse frenesi criativo. Ainda assim, dessa curta e atribulada estadia saíram dezenas de fotografias, algumas das quais vão ser mostradas a partir de hoje na exposição Nicolás Müller. Obras-primas que a Fundação D. Luís I/Centro Cultural de Cascais acolhe até 17 de Abril de 2016, retrospectiva integrada na Mostra Espanha 2015 e no festival de fotografia e artes visuais PHotoEspaña, que este ano voltou a alargar o seu leque de iniciativas a Portugal.

Ainda que pouco conhecido fora de Espanha, onde acabaria por se fixar em definitivo no final dos anos 1940, Nicolás Muller (Orosháza, Hungria, 1913 – Andrín, Espanha, 2000) foi um dos mais profícuos cultores do modernismo fotográfico de pendor social e humanista, corrente que se fez notar até meados do século passado e que encontra raízes na estética construtivista russa e nas teorias da Bauhaus que se seguiram. Para o fotógrafo Chema Conesa, comissário desta exposição que já foi mostrada em Paris e em Madrid, em 2013, por ocasião do centenário do nascimento do fotógrafo, Muller “foi um dos protagonistas da renovação da linguagem fotográfica da reportagem documental” à qual fornece “um cunho de autoria”. “Trabalha a construção geométrica e arquitectónica da imagem e esse é outro dos seus maiores legados”, afirma Conesa em conversa ao telefone com o ípsilon, pouco antes de viajar para Lisboa onde ajudará a seleccionar cerca de 70 obras das 120 que fizeram parte das exposições anteriores. 

Apesar de todo o génio criativo (ou sobretudo por causa dele), certo é que depois acabar os estudos na Hungria em Direito e Ciências Políticas a vida e Muller transforma-se numa sucessão de destinos sem paragem garantida ou estabilidade a curto prazo. Tudo por causa da chegada de Hitler ao poder na Alemanha, do plano anti-semita que foi posto em prática e da guerra que daí resultou. Precisamente quando a longa noite nazi começou a instalar-se sobre a Europa, Muller arranjou trabalho como repórter fotográfico numa agência em Viena, na Áustria. Com a tarimba da agenda quotidiana aprende a manejar com destreza uma Rolleiflex com películas de formato quadrado, que acabariam por acompanhá-lo em boa parte da sua actividade como fotógrafo. Quando regressou à sua terra natal, em 1937, o ambiente geral em relação às famílias judias piorava de dia para dia. Mesmo assim, decidiu percorrer as planícies húngaras em busca de rostos, cenas de campo, trabalhadores e interiores de casas de agricultores, uma visão humanista forjada no seio do clube universitário judeu do qual faziam parte vários intelectuais da época que se dedicaram a denunciar a situação quase feudal em que viva a Hungria nas primeiras décadas do século XX. As fotografias que resultaram dessas viagens dão forma a um programa estético e político que não mais abandonaria. Muller concentrou o seu olhar na força humana, procurou enquadrar as paisagens na actividade do homem, encontrar situações de limite e deu preferência à espontaneidade. Ao colocar a câmara abaixou ou acima do sujeito, construiu pequenos picados ou contra-picados que dão dramatismo ao conteúdo.

Foto
© Archivo Regional, Madrid

A maneira como se posicionava servia um objectivo de comunicar com o máximo de eficácia, causar o maior impacto, denunciar. Logo nas primeiras tentativas - através das fotografias publicadas nos livros Vida dos nossos camponeses (com o etnólogo Gyula Ortutay, 1937) e Canto das Tormentas (com o escritor Géza Féja, 1937) - conseguiu-o de tal maneira que surgiu de imediato um conselho: “O melhor é que te vás embora”. E Muller foi. Em 1938 abandou a Hungria deixando os pais e o irmão mais novo. O primeiro destino era Paris, cidade com fama criativa, onde imaginava poder continuar a sua carreira como fotógrafo e onde já estavam instalados outros exilados húngaros praticantes do mesmo ofício. No início, o ambiente que encontrou era de confiança e liberdade. Com o primo, comerciante de tecidos, viajou pela França fotografando em várias localidades para depois mostrar trabalho às publicações parisienses.

Quando Nicolás Muller recebeu a visita da namorada na Cidade Luz, o pintor húngaro Árpád Szenes, casado com a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, emprestou-lhe um chalet com a condição de que tomassem conta de um gato. Correu tudo bem até Margaret regressar à Hungria e o gato fugir. Ao que conta Muller, os ratos tomaram conta do chalet e o fotógrafo alugou um apartamento. Desconhece-se se houve um raspanete do casal Szenes/Vieira da Silva, mas o certo é que havia um espírito de entreajuda forte entre a comunidade húngara da cidade. Por isso, não tardou muito até que Muller conhecesse três dos principais nomes da fotografia europeia de então, húngaros como ele: Brassaï, Robert Capa, e André Kertész. Em Paris, publicou reportagens em várias revistas. Um trabalho sobre o porto de Marselha ficará como um dos mais emblemáticos de 1939, ano em que começou a II Guerra Mundial e com ela uma nova ameaça à sua vida. Com uma “dor no coração” e sem um plano concreto de futuro abandonou a capital francesa de comboio rumo a Portugal, supostamente neutral no conflito. O pai, advogado influente e membro do Rotary Club, foi quem moveu influências para o tirar da prisão e tentou encontrar maneira de o fixar em Portugal sem levantar suspeitas da sua religião.

Assim que saiu da cadeia, no final de Novembro de 1939, Nicolás Muller pediu à dona da pensão que lhe indicasse uma igreja onde pudesse ser baptizado. Um pároco ainda lhe deitou água benta na cabeça e Muller conseguiu um certificado de baptismo, nada que impedisse a PIDE de lhe dar 15 dias para sair do país. O fotógrafo obedeceu e o próximo destino foi Tânger, Marrocos, onde passaria sete daqueles que foram os “anos mais felizes” da sua vida.  

Na bagagem levou dezenas de fotografias de um Portugal rural e algo assustado. No conjunto de imagens que viu a luz por ocasião do centenário, muitas das quais inéditas, a figura humana é sempre protagonista. E a mulher muito mais. É o próprio Muller que descreve o que encontrou: “No Porto agradou-me a zona ribeirinha, cheia de bulício, com as suas cores vivas, as mulheres com pescoços de cariátide, descarregando pesadas cestas de sal e carvão. Outras mulheres, sempre com as cestas sobre a cabeça, descarregando grandes fardos de bacalhau seco e, entretanto, os homens estirados e sentados ao sol, olhando as nuvens ou jogando às cartas”. Para Conesa, este grupo de fotografias é “excepcionalmente coerente” e “muito próximo das pessoas”, estratégia que serve para “dignificar os fotografados”.

Foto
© Archivo Regional, Madrid

Em Tânger, cidade internacional e aberta, Muller deslumbrou-se com a luz (e o seu excesso), começou a fotografar nus e a dominar a iluminação de estúdio, apesar do seu habitat ser a rua, onde registou multidões, cenas de quotidiano e tradições. O impacto de uma nova cultura foi enorme, quase febril: “Ardiam-me os olhos, as mãos e todo o meu ser, com a vontade de andar por todo o lado a tirar fotografias”. Ainda em Marrocos, casou com uma espanhola e caiu nas graças da elite intelectual que lhe abriu as portas de Madrid, onde, em 1947, fixou um estúdio e recomeçou uma vida que não deixou de ser levada como “uma pedra rolante”, como o próprio admitiu numa entrevista à televisão pública húngara. Quando, anos mais tarde, surgiu o convite para percorrer Espanha para uma série de livros aceitou de imediato. Era, afinal, um regresso à terra, às gentes humildes, aos costumes e, sobretudo, à condição de andarilho. Desse trabalho foram publicados sete livros. Muitas viagens e paradeiros depois, havia de cansar-se no início dos anos 80. A fotografia que praticou estava em desuso, apareceram processos industriais que modificaram a maneira como encarava a sua arte. Nicolás Muller retirou-se aos 68 anos, desta vez para um exílio voluntário nas Astúrias, no alto de um sopé de Llanes. E sobre esse desejo de uma terra natal disse um dia: “Andrín é uma Itaca para um Ulisses como eu”.

Sugerir correcção
Comentar