A manufactura do eu

Estes vazios só podem ser preenchidos com a aceitação dos mesmos, de que eles existem, e que somos seres imperfeitos à partida. De que o vazio, os defeitos que todos carregamos connosco fazem parte integrante do eu.

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Nina`H/Flickr

No princípio era barro, húmido, mole, dúctil.

Na génese não assumia nenhuma forma, ou assumia todas as formas possíveis e, como tal, nenhuma em particular.

Depois vieram as mãos sábias e hábeis, a Natureza com os seus genes, ou Deus ou o Diabo com as suas vontades inescrutáveis — as crenças variam — e moldaram o barro a seu bel-prazer até surgir algo identificável como um ser humano.

À medida que o tempo foi passando e já nos braços dos nossos progenitores ou dos nossos cuidadores primários, o barro tornou-se rígido e quebradiço. Agora já não queria mudar de forma como antes. Já não podia ser tudo e as suas formas projectavam no futuro uma sombra de contornos bem definidos.

Mas artesão que fez a peça, apesar de sábio e hábil, não era perfeito. Nem as pessoas que se seguiram e fizeram parte das nossas vidas em pequenos, apesar de todas as suas habilidades, de uns e de outros, aqui e ali notavam-se certas imperfeições. Tinham-se formado pequenas bolhas, bolsas de ar que agora comprometiam a perfeição do produto final. Mas agora já era tarde para os corrigir e foi assim que o mundo nos deu as boas-vindas nos nossos primeiros anos. Uma peça, única, bela, singular e imperfeita.

São os vazios que todos temos, em maior ou menor escala. E que por vezes ameaçam a integridade do todo. Tentamos tapá-los como podemos, para parecermos mais perfeitos, mais pessoas-humanas quando nos miramos ao espelho. Alguns usam o álcool ou outras drogas, outros, a comida, outros, o sexo, outros, os relacionamentos seguros mas que não os fazem felizes, outros ainda, hábitos saudáveis mas levados ao extremo. É um sentimento comum ao ser humano, ele que foi posto no mundo sem estar completo, e sem manual de instruções a acompanhar.

Estes vazios só podem ser preenchidos com a aceitação dos mesmos, de que eles existem, e que somos seres imperfeitos à partida. De que o vazio, os defeitos que todos carregamos connosco fazem parte integrante do eu.

Mas isto não significa a resignação perante um qualquer fatalismo. Cabe-nos a nós, ou a um terapeuta qualificado, ou a ambos, preencher os vazios deixados pelo Artesão. Ao longo da vida é-nos dada a oportunidade de terminar a peça. Demora o seu tempo e o processo está longe de ser linear, mas vale a pena. Para que o produto final seja melhor do que aquele que começou.

E mesmo que no final só restem cacos para depois alguém varrer.

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