11 canções no tom da demência

A partir da descoberta da poesia de Ângelo de Lima, Ana Deus pegou em Nicolas Tricot e ambos criaram música para poemas de gente visitada pela loucura ou pelo suicídio. Bruta é um disco feito de micro-mundos musicais de cativante perturbação.

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Ana Deus cruzou-se com a história e a poesia de Stela do Patrocínio ao investigar para uma ideia de disco que vinha discutindo com o editor da Mia Soave e da Mariposa Azual, Nuno Moura RITA ANTUNES

Stela do Patrocínio viveu praticamente 30 anos como interna da Colónia Psiquiátrica Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Teria morrido apenas como louca, varrida para longe dos olhares recriminadores e das ruas castigadoras, não fosse a artista plástica Neli Gutmacher resolver instalar um atelier no hospício algures nos anos 80. Não foi preciso muito para que Gutmacher percebesse que Stela falava e comunicava com o mundo sob uma forma de poesia oral desabrida e desconcertante. O fascínio despertado pela interna foi-se espalhando até ao ponto de a sua criação poética – que, de facto, não correspondia à declamação imprevista de textos apreendidos num qualquer outro momento da sua vida, nem tão-pouco soava a uma arquitectura aleatória das palavras, mas era um jorro de considerações sobre si e sobre a sua peculiar assimilação da vida – ser gravada, passada a livro e ser candidata, em 2002, ao Prémio Jabuti, um dos mais prestigiados das letras brasileiras.

Ana Deus cruzou-se com a história e a poesia de Stela do Patrocínio ao investigar para uma ideia de disco que vinha discutindo com o editor da Mia Soave e da Mariposa Azual, Nuno Moura. “Levianamente”, conta a cantora dos Osso Vaidoso e ex-Ban e Três Tristes Tigres ao Ípsilon, “começámos a dizer que íamos fazer um disco de poetas doudos.” Acontece que, segundo Ana Deus, Nuno Moura não é dizer que faz e ficar à espera que se faça sozinho. E, portanto, se a ideia existia, era apenas uma questão de alfinetá-la e espremê-la até ganhar uma forma viva – agora editada sob o título Bruta. Depois de ter já antes gravado para a Mia Soave um disco (Degrau) que acompanhava o livro Reality Show ou Alegoria das Cavernas, de Alberto Pimenta, a cantora começou à cata de poetas que tivessem sido visitados pela loucura ou, em casos excepcionais, houvessem escolhido despedir-se do mundo por meio do suicídio – Mário de Sá Carneiro, Sylvia Plath ou Manuel Laranjeira.

A raiz da ideia, no entanto, fecunda no momento em que Ana Deus, tempos antes da conversa com Nuno Moura, tropeça no soneto de Ângelo de Lima Pára-me de repente o pensamento. “Tinha adorado e achado uma coisa lindíssima, e então fui ver os outros poemas dele no livro editado pela Assírio & Alvim [Poesias Completas, 1991]”. Ângelo de Lima, internado em Dezembro de 1901 no Hospital de Rinhafoles (actual Miguel Bombarda) por, alegadamente, ter proferido uma obscenidade no então Teatro Dona Amélia (hoje São Luiz), teria os seus escritos de traço surrealista e carregados de neologismos publicados por Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro na Orpheu, roubando-o à irrelevância. “Pela poesia dele, não me pareceu que fosse doido de todo”, confessa Ana Deus. Mas o próprio verso “Pára-me de repente o pensamento” (transformado pela cantora em Douda Correria) foi-lhe depois descodificado por psiquiatras como um possível sintoma da esquizofrenia que fora diagnosticada a Lima. Os esquizofrénicos, disseram-lhe, passarão não raras vezes por esse momento em que o pensamento parece travar a meio do percurso. “Mas, para mim, não passava de poesia”, diz Ana Deus. “E acho que qualquer pessoa poderia ter escrito aquilo no auge do exagero poético.”

Ângelo de Lima é o autor de três dos poemas que Ana Deus e Nicolas Tricot (músico habitual nas bandas dos ex-Ornatos Violeta Manel Cruz e Nuno Prata) abordam em Bruta, criando uma série de 11 micro-mundos musicais, em que cada poema e cada poeta foram objecto de um tratamento distinto. “Líamos os poemas em conjunto, pensávamos nos ambientes que havíamos de criar e depois na perturbação que poderíamos acrescentar se achássemos que não estava já suficientemente perturbado.” Tricot foi escolhido precisamente por manejar um conjunto vastíssimo de instrumentos e, dessa forma, potenciar a vontade de que cada música pudesse representar uma intervenção ao microscópio num universo particular. Dir-se-ia até que, pela cabeça de Ana Deus, terá passado uma ideia de integrar na própria interpretação um distúrbio de personalidade. Ela não o nega.

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Com Nicolas Tricot, Ana Deus tenta transportar-se para dentro de cabeças inexpugnáveis RITA ANTUNES

A transformação não se verifica, inclusivamente, apenas de tema para tema. Gás Puro e Falatório, a partir dos poemas de Stela do Patrocínio – no primeiro, a voz da própria Stela ouve-se de início, até o baixo-polka-punk típico de Tricot lançar o tema –, atestam isso mesmo: começam ambas mais sombrias e nervosas, entregando-se depois a arraçados de refrão com melodias que parecem cindir uma só voz em duas outras. Esses dois casos de incursões na poesia de Stela foram, aliás, os mais arredios com que Ana Deus se deparou. Até mesmo por aquilo que extraía daquelas palavras: “Fiquei muito surpreendida com o tipo de escrita dela, como se andasse à procura do ser, do existir, como se, por vezes, duvidasse da sua própria existência e estivesse sempre a fazer-se de novo através da palavra.”

Música bruta
Bruta explora um universo de crueza em que Ana Deus tem investido ultimamente, partilhando-o quase sempre com Alexandre Soares no duo Osso Vaidoso. Desta vez, no entanto, queria expor-se a uma nova parceria e evitar a presença da guitarra, tentando desequilibrar o “duelo” para o lado da palavra – “com o Osso”, diz, “nem sempre isso é possível, e aqui queria que a poesia fosse mais forte do que a música”. Curiosamente, na companhia de Tricot, a cantora leva Choro, poema de Manuel Laranjeira, para o universo de cabaret em que primeiro encontrou Soares, por alturas do primeiro álbum dos Três Tristes Tigres, Partes Sensíveis. É uma das formas musicais mais acercadas da canção em todo o álbum (a par de Mortal e Embriagadas, deliciosas interpretações de poemas de António Gancho). “Acho que tenho a ‘tendenciazinha’ pop de procurar refrão em todo o lado”, ri-se Ana Deus.

O título do álbum, é fácil de depreender, sugere uma familiaridade com a arte bruta, popular no domínio da pintura. E é atrás também da interrogação “Até que ponto existe também uma poesia bruta?” que Bruta parte. Na verdade, e exceptuando o caso de Stela do Patrocínio – “que tem uma linguagem própria, incorrecta, livre, um falatório que não tem muito que ver com o destinatário”, justifica –, Ana Deus não parece crer que a sua pergunta tenha uma resposta afirmativa. “Esses artistas brutos – ou outsiders, porque a designação também é polémica; só que eu gosto da expressão ‘bruta’ – têm características muito próprias e individuais.” E nesse aspecto, só Stela se enquadrará, uma vez que alguém como Ângelo de Lima, por exemplo, manifesta um “domínio da linguagem dentro das regras”, negação por si só de uma tese semelhante. A palavra “bruta”, ainda assim, assenta perfeitamente a uma música construída sobre poemas que parecem chafurdar em sentimentos de culpa e de dificuldade em existir e se relacionar com o mundo.

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Aos poucos, no meio desta frequente elaboração dos autores de que a culpa por aquilo que vêem ou não vêem será apenas fruto da sua cabeça, Ana Deus foi descobrindo a ironia de António Gancho, mas também a recorrente temática de morte. “Muitos deles tinham uma visão romântica da morte, da morte como última solução”, acrescenta. É também dessa constatação que nasce a associação do disco a um livro de poesia (Doutor Tristeza) de um desconhecido poeta brasileiro, Augusto dos Anjos, que o editor da Mia Soave decidiu acoplar à música. “Com o Augusto dos Anjos temos a sensação de estarmos a ler uma natureza morta; fala muito de carne, de vermes, de toda a vida como se fosse já morte”, descreve. Escusado será dizer que, apesar de se dizer “uma ‘pessoinha’ com uma vida muito mais ligeira”, Ana Deus pensa já em escoltar a poesia de Augusto dos Anjos até ao mundo das canções.

Até porque essa sua cada vez mais fatal atracção pela matéria plástica e musical da palavra está longe, muito longe de conhecer um fim. Com as canções mais tradicionais, reconhece a cantora, mais cedo ou mais tarde tem de admitir o fastio e o desconsolador aborrecimento que lhe causam ao ter de repetir esses textos concerto após concerto. Alguma desta poesia, pelo contrário, “tem a capacidade de se ir desvendando e abrindo”. “É também a minha maneira de ir percebendo sensibilidades, ir percebendo a vida e o lado plástico da palavras e das ideias com aquilo que vou fazendo”, diz. “É um jogo de que gosto mesmo, porque é como se ouvisse a poesia e reconstituísse o caminho da escrita que os poetas fizeram. Como se estivesse a fazer música com uma terceira pessoa, aquela que escreveu.”

E Bruta é um notável exercício de indagação disso mesmo – com Nicolas Tricot, Ana Deus parte em busca de retomar um caminho alheio, tentando transportar-se para dentro de cabeças inexpugnáveis. Não é de crer que consiga refazer esses caminhos, mas o esforço em esgravatar nessa direcção é paga mais do que compensadora.

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