Manual dos espiões recomendava práticas proibidas por lei

Foi preciso esperar até este ano para o Tribunal Constitucional proibir, de forma definitiva, acesso das secretas a informação bancária, fiscal e outros dados confidenciais de terceiros.

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Jorge Silva Carvalho Rui Gaudêncio

O manual de procedimentos que orientava a actuação dos espiões portugueses incluía, até há pouco tempo, práticas proibidas por lei, como o acesso dos agentes das secretas a dados confidenciais de terceiros provenientes de serviços das finanças e de operadoras de telecomunicações.

Sempre foi assim, explicou em tribunal esta quinta-feira o ex-dirigente do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa Jorge Silva Carvalho, acusado de ter violado o segredo de Estado e de ter conseguido um emprego na Ongoing à custa de ter passado aos dirigentes deste grupo privado informações classificadas que mandou os seus subordinados nas secretas recolherem. “Quando entrei para os serviços, em 1990/91, já era habitual termos fontes de informação nas operadoras de telecomunicações”, descreveu. O escândalo só se deu duas décadas mais tarde, quando se soube que tinha mandado espiar a facturação detalhada do telemóvel do então jornalista do PÚBLICO Nuno Simas, para descobrir quem eram as fontes de informação das notícias que ele andava a publicar sobre as secretas. Silva Carvalho assegura que as secretas recorriam por hábito a este tipo de métodos ilegais de actuação, uma vez que os meios justificavam os fins: era a segurança do Estado que estava sempre em causa. Nesta situação particular, as secretas desencadearam “medidas de autoprotecção”, para descobrir quem eram os delatores dentro da organização. A operação foi bem sucedida: “Acabámos com a fuga de informação e extinguimos qualquer comportamento patológico desse género”, recordou o principal arguido do chamado processo das secretas.

Pelo que se infere do seu relato, pouco ou nenhum era o controlo que o Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) exercia sobre os espiões. “A lei permite ao conselho fiscalizar tudo, mas isso não acontecia. Nos três anos que estive no SIRP, entre 2005 e 2008, nunca tive uma inspecção-surpresa. Num dos anos do meu mandato foram uma vez ao serviço”, contou Silva Carvalho, admitindo que o acesso às listas de chamadas alheias nem sequer era a prática “mais grave” levada a cabo pelos espiões.

Agente secreto que se negasse a fazer o que lhe mandavam os chefes “não durava muito tempo” ao serviço. Foi preciso esperar até este ano para o Tribunal Constitucional proibir, de forma definitiva, o acesso dos espiões a informação bancária, fiscal e outros dados confidenciais de terceiros.

Quando saiu das secretas para a Ongoing, em finais de 2010, Silva Carvalho duplicou o salário que tinha nas secretas e ainda recebeu, para uso profissional, uma carrinha Mercedes, “muito bonita". Habituado às poupanças nos serviços do Estado, estranhou a prodigalidade com que os empregados do grupo privado eram tratados: até as secretárias “tinham Mercedes”. Quanto a Nuno Simas, assegura que, apesar de tudo, se ficou a dar bem com o jornalista: “Mantemos relação numa rede social, onde de vez em quando nos espreitamos mutuamente. É um sinal de respeito”.

 

 

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