Viver no meio da derrocada

O País Fantasma, de Vasco Luís Curado, romance entre ficção e reportagem feita em diferido, é muito mais do que um retrato da vida colonial em Angola entre 1961 e 1975. É o dedo nas feridas que mantivemos escondidas depois da queda do império.

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Como psicólogo, Vasco Luís Curado trabalhou muitos anos com combatentes da Guerra Colonial — os episódios que lhe contaram, bem como a sua “lenda familiar” sobre a vida em Angola, “mereciam não cair no esquecimento” ENRIC-VIVES RUBIO

“Foi pura coincidência o livro ter sido publicado este ano, quando se comemora o 40.º aniversário da ponte aérea que trouxe centenas de milhares de refugiados de Angola para a ainda então metrópole”, diz ao Ípsilon Vasco Luís Curado (n. 1971), autor do romance O País Fantasma. Nascido nessa antiga colónia portuguesa, formado em Psicologia, também ele veio para Portugal em 1975 na maior ponte aérea intercontinental alguma vez realizada. “Aconteceu por iniciativa de um tenente-coronel da Força Aérea [António Gonçalves Ribeiro], e um pouco contra a vontade do Presidente da República [Costa Gomes] e do primeiro-ministro [Pinheiro de Azevedo], mais preocupados com as intrigas da política doméstica”, precisa. O romance agora publicado – abrangendo o período desde os massacres de 1961, na Baixa do Cassange (Norte de Angola), até Novembro de 1975, em Lisboa, com a rápida incursão de um capítulo aos anos 1950 – narra o percurso de duas famílias coloniais, uma de funcionários públicos e outra de um fazendeiro ex-militar, e descreve a vida no Ultramar, a guerra, e por fim a fuga apressada para a capital do império.

Foram vários os motivos que o levaram a escrever o romance, mas refere como principal aquilo a que chama de “lenda familiar” – as histórias e as recordações dos pais (que foram para África nos anos 1950) e dos irmãos mais velhos sobre a vida em Angola, e que, “trabalhadas e distorcidas em conversas de família, formam por si só o núcleo de um romance”. Mas há mais: como psicólogo, Vasco Luís Curado trabalhou durante dez anos no exército com antigos combatentes – continua ainda a fazê-lo, na vida civil. “O contacto com esses homens que fizeram a Guerra Ultramarina deu-me o lado bélico, das operações no mato, que eu desconhecia”, afirma. “Os muitos episódios que me contaram, quer tenham sido ou não traumáticos, mereciam não cair no esquecimento. A personagem do alferes Capelo resulta da condensação das várias histórias desses antigos combatentes. Ele é um observador, mas está implicado em acção directa. As coisas completaram-se assim.”

Com O País Fantasma, o autor quis também contribuir para a reflexão sobre um país colonialista que, e de uma maneira muito rápida, faz uma transição para passar a ser um país europeu depois de quase 600 anos de ciclo imperial. “Como é que em tão pouco tempo esquecemos o passado colonial de 600 anos e nos tornámos em europeístas convictos? Concluir o ciclo imperial consistiu apenas em apagar a luz e fechar a porta? O que ficou desses 600 anos?”, interroga-se Vasco Luís Curado. “Não é à toa que se fala de recalcamento. Tivemos de o fazer. As feridas foram disfarçadas, escondidas, arrumadas, reprimidas. O trauma ficou em estado latente. A vida tinha de continuar, apesar da hecatombe. O mesmo aconteceu com os militares, com o stress pós-traumático – que não é em tão grande número como se pensa, de acordo com os estudos.”

Os primeiros três capítulos do romance, que se centram nos anos de 1961 a 1964 em pequenas localidades no Norte de Angola, têm páginas de grande violência, exercida tanto do lado dos guerrilheiros da UPA (mais tarde FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola) como, e em resposta às chacinas dos dias 15 e 16 de Março, da parte de alguns fazendeiros brancos que se organizaram para defenderem as suas fazendas de café e algodão. Entre famílias de proprietários e trabalhadores, talvez tenham sido milhares os chacinados nesses dias nas fazendas da Baixa do Cassange. Curado diz que “foi talvez o maior massacre de brancos ocorrido em África”. Eram poucos os militares na colónia, e mesmo esses não conheciam o mato. Tiveram de ser os próprios fazendeiros, que se organizaram em grupos, a servir-lhes de guias, carregando também eles muitas armas obsoletas (à excepção de algumas pertencentes a profissionais da caça grossa). Os militares só partiriam de Lisboa semanas depois dos acontecimentos. O espanto dos soldados que tinham estado sempre estacionados na cidade, e que agora chegavam ao mato, era grande. Desconheciam tudo. “A única coisa que as trevas enviavam para invadir a luz eram besouros gigantescos, zunindo com as quatro asas abertas e vindo embater contra os faróis.”

Brandos costumes
Uma outra das ideias deste livro parece ter sido a de combater a ideia dos brandos costumes portugueses. “Isso foi uma coisa salazarista para hipnotizar as massas”, diz Vasco Luís Curado. “Se tivermos um olhar lúcido sobre a nossa História facilmente percebemos que não somos um povo de brandos costumes, mas de costumes violentos. Como poderíamos ter tido um império durante quase 600 anos com brandos costumes? Por isso introduzi no romance várias personagens [muitas são secundárias à acção] que representam bem esse lado agressivo, belicista, quezilento e egocêntrico.”

Apesar de a escravatura ter sido abolida em Portugal no século XIX, persistiam em África formas de exploração laboral que se aproximavam muito dela. Uma era a dos chamados “contratados”, que mais não eram do que trabalhadores forçados. Até aos anos 60, muitos dos fazendeiros, e e muitas das companhias coloniais, usaram e abusaram dos “contratados”, bem como exploraram economicamente os pequenos agricultores. Sabe-se, historicamente, que um dos factores que levou aos massacres da Baixa do Cassange foi o descontentamento face ao preço do algodão que lhes era pago. Mas Vasco Luís Curado descobriu mais, e diz: “Há tanta coisa de que não se fala. Por exemplo, dois meses antes dos 15 de Março de 1961 [data dos primeiros massacres], em Janeiro, houve várias revoltas contra os preços do algodão, contra as condições infra-humanas, de quase escravatura. Numa localidade houve uma manifestação de centenas de pessoas, pequenos agricultores e trabalhadores grevistas. E que fizeram os portugueses? Napalm para cima deles. Quem é que em Portugal tem esta percepção das coisas? Que antes de os americanos terem usado napalm no Vietname em cenário de guerra já nós o tínhamos feito em Angola sobre manifestantes?”

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ENRIC VIVES-RUBIO

Em O País Fantasma, um romance bem escrito, entre a ficção e uma espécie de reportagem feita em diferido, tenta-se perceber como se vive no meio da derrocada de um império que teve os primeiros sinais de ruína em 1961. Para isso, o seu autor pesquisou durante anos: recolheu livros em alfarrabistas, leu jornais e revistas da época, ouviu pessoas: “Tive de aprender como funcionava uma fazenda de café em todos os seus pormenores, os elementos geográficos, o clima, e como era a vida colonial também nas cidades." Mas o autor assume que um dos aspectos mais interessantes da sua pesquisa foi o que encontrou escrito, quer em livros quer em jornais, por repórteres que foram na altura aos locais, e que “não descreviam apenas os massacres mas também a terra, o clima, como se andava nas picadas, o que era estar no mato”.

O romance termina em Novembro de 1975, acompanhando até ao fim o PREC, fase “em que o país parecia estar a enlouquecer e em que os retornados vieram contribuir para o estado de loucura nacional”, diz Curado. Ao ler o final, é quase impossível que o leitor que conhece imagens da época, e sobretudo uma famosa fotografia de Alfredo Cunha com caixotes e bagagens dos retornados tendo o Padrão dos Descobrimentos ao fundo, não se confronte com essas memórias. Também Vasco Luís Curado pensou nessa imagem em particular, mas quis “sabotá-la” no seu simbolismo. “A fotografia do Alfredo Cunha mostra o clímax e o anti-clímax. É o movimento épico da expansão e da conquista representado pela estátua do Infante, e o resultado final – não épico, apenas lamentável – que são os despojos das pessoas que abandonaram as colónias. O perigo desta excelente fotografia é hipnotizar-nos com a ideia da nostalgia dos impérios, podemos ficar tão extáticos e passivos como o próprio Infante de pedra. Por isso, procurei sabotar essa imagem, quebrar o seu feitiço. No último capítulo, uma personagem insulta dois repórteres que descrevem a nostalgia do começo e do fim do império, e por arrastamento insulta os vultos dos navegadores e dos descobridores, para contrariar o conformismo, afirmar a raiva e relembrar que não são as estátuas que fazem um país.”

O País Fantasma não é apenas mais um retrato da vida colonial, é sobretudo o pôr o dedo nas feridas que mantivemos escondidas depois da queda do império.

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