A Magna Carta em Lisboa

Depois de ter passado por seis países, a Magna Carta chega a Portugal. Poderá ser visitada durante uma semana. Raros documentos da História universal terão sido capazes de funcionar tantas vezes e em tantos lugares como uma ideia mobilizadora.

O Rei João assinando a Magna Carta, por Frank Wood, 1925
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O Rei João assinando a Magna Carta, por Frank Wood, 1925 DR
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Uma das cópias da Magna Carta Cortesia: British Library

A Magna Carta está em Lisboa. É um documento de 800 anos e com uma elevada carga mítica. No século XIX, o historiador britânico F.W. Maitland definiu-a como “um texto sagrado”, fundador das liberdades britânicas. Os historiadores distanciam-se do mito mas não negam que a Carta moldou a cultura política anglo-saxónica e ganhou uma repercussão quase universal.

A exposição Magna Carta – Significados é inaugurada hoje às 18h na Torre do Tombo, em Lisboa. Estará patente até dia 12. É uma parceria entre a Embaixada britânica e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no quadro da Digressão Mundial da Magna Carta integrada na comemoração dos 800 anos da sua assinatura, em 1215. Será exposto um exemplar de 1217, da Catedral de Hereford, e também o exemplar único de 1215 do decreto real de João I (João Sem Terra) ordenando a sua aplicação. Serão também exibidos documentos portugueses da época que ajudam a contextualizar a Magna Carta, assim como o Tratado de Windsor, celebrado entre Portugal e a Inglaterra em 1386.

Estará presente o ministro da Cultura, João Soares. Serão “anfitriões” Kirsty Hayes, embaixadora do Reino Unido, e Silvestre Lacerda, director da Torre do Tombo. Na quarta-feira, a exposição será visitada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Philip Hammond.

A exposição de Lisboa encerra uma digressão do documento por sete países em quatro continentes: Estados Unidos, Luxemburgo (Tribunal de Justiça da UE), China, Austrália, Singapura, Malta e Portugal. É uma grande operação diplomática. A Carta “é a maior exportação da Inglaterra”, afirma Sir Robert Worcester, presidente do Magna Carta 800th Committee.

Porquê Portugal? Responde a embaixadora Hayes: “A Aliança Luso-Britânica — que remonta a 1373 — é a mais antiga aliança diplomática bilateral que ainda subsiste hoje em dia. Entendemos por isso que faz todo o sentido incluir Portugal nesta digressão. Fico extremamente satisfeita por isso e por termos conseguido uma parceria com o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde está guardado o Tratado de Windsor – o mais importante Tratado no relacionamento histórico bilateral entre o Reino Unido e Portugal e que estará também patente nesta exposição. A vinda da Magna Carta a Portugal é uma forma de comemorar e reforçar uma relação que perdura há séculos e que, estou certa, continuará por muitos mais.”

A capitulação de João I
A Magna Carta foi assinada no dia 15 de Junho de 1215 por João I e pelos seus barões e bispos. Foi uma espécie de tratado de paz para pôr termo à revolta contra o monarca. Furiosos com as derrotas do rei nas suas campanhas em França, com os seus abusos e as subidas de impostos, os barões impõem-lhe um texto que garante os privilégios do clero, os direitos da nobreza, a liberdade de circulação dos negociantes, confirmando também os privilégios das cidades, nomeadamente Londres.

Mas o texto tem duas disposições que explodirão no futuro. Estipula que nenhum imposto possa ser decretado sem consentimento do “conselho comum do reino”, composto pelos dignitários do clero e da nobreza. E o fim do arbítrio real. “Nenhum homem livre será detido, ou preso ou desapossado dos seus bens, declarado fora-de-lei, exilado ou executado, excepto por julgamento dos seus pares e pelas leis do país.”

Observa o medievalista David Carpenter: “Essencialmente, o que aconteceu em 1215 reside no facto de o reino se ter revoltado e dito ao rei que tinha de obedecer às suas próprias regras.” E se o monarca viola a lei e as normas do reino ou recusa fazer justiça, os súbditos têm o direito de se insurgir “até que os abusos tenham sido reparados”. O rei não está acima da lei.

A Magna Carta  não sai do quadro feudal. As “liberdades da Igreja de Inglaterra”, por exemplo, são os seus privilégios. E a expressão “homens livres” não tem o significado de hoje. Designa os barões, o clero e, na expressão portuguesa, os “homens bons” das cidades. Os outros continuam de fora.

As Leis Gerais de Afonso II
Os documentos portugueses expostos são as Leis Gerais de Afonso II, de 1211, numa cópia do século XIV, o Registo da Chancelaria de Afonso II (1217-1221) e as Inquirições Gerais de 1220. E também o Tratado de Windsor. Porquê Afonso II? O rei estava em conflito com as irmãs, apoiadas pelo rei de Leão, numa situação não muito diferente da do rei inglês. Mas o objectivo de Afonso II é mais largo. É ele que convoca uma “cúria plena” em Junho de 1211 para elaborar as primeiras “leis gerais do reino”, explica a medievalista Maria João Branco no texto que acompanha a exposição. Ao fazer concessões à nobreza e ao clero, mantinha a paz no reino e assegurava a supremacia sobre os nobres.

E tem uma particularidade: aplicava-se a todos, sem excepção. “Destinadas a todos os súbditos do reino, constituem as primeiras leis gerais de Portugal (...) desde as leis que definem direitos e deveres dos grupos privilegiados, até àquelas (...) que garantem os direitos de homens livres não nobres, ou que proíbem os casamentos forçados, ou que garantem a integridade física do homem comum face aos privilegiados. É uma compilação de leis gerais mais precoces do Ocidente Medieval, senão a mais antiga conhecida.”

As Leis Gerais ficaram para os historiadores. A Magna Carta tornou-se num mito universal. Porquê? A resposta está na diferente História dos dois países.

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