A reinvenção moderna de um documento medieval

Há duas Cartas: a histórica e a reinventada. A que hoje conta é a que se transformou num símbolo das liberdades e da limitação dos poderes do Estado.

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A Magna Carta em Washington Karen Bleier/AFP

Observa o medievalista britânico David Carpenter: “Em 1215 tanto [o rei] João como os seus inimigos teriam ficado espantados se soubessem que a Carta sobreviveria e seria celebrada 800 anos depois.”

É uma longa história. João Sem Terra desejava que o tratado de paz, mais tarde designado por Magna Carta, ficasse sob sigilo. Os bispos e as catedrais trataram de fazer e guardar cópias das suas várias versões. Mas na época não teve um impacto efectivo e foi esquecida.

Hoje é o contrário. Muitos ingleses e americanos apresentaram a Carta como matriz da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Margaret Thatcher colocou-a na origem do governo representativo e dos direitos humanos, para desvalorizar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), da Revolução Francesa.

Na prática, a Magna Carta foi “redescoberta” no século XVII pelo jurista Edward Coke, membro dos Comuns, durante a luta do Parlamento contra o absolutismo de Carlos I. Foi o redactor da Petição de Direitos de 1628, que declara restabelecer a validade da Carta de 1215, contestando os impostos sem aprovação parlamentar, as prisões arbitrárias ou o uso da lei marcial. O mesmo acontece na Lei do Habeas Corpus de 1679.  Na tradição anglo-saxónica, quanto mais antigo é um precedente maior é o seu valor.

“Na realidade, foi a ideia de Coke sobre a Magna Carta que foi exportada para o mundo e não a versão que o rei João e os seus barões tinham reconhecido”, resume Lord Sumption, medievalista e juiz do Supremo Tribunal britânico.

A segunda vida da Magna Carta vai acontecer nas colónias americanas na sua luta contra os “abusos” e a “tirania” da Coroa e do Parlamento britânicos. A Carta é reinterpretada e transformada em símbolo do “Primado da Lei” (Rule of Law). Benjamin Franklin invoca-a como fundamento para a contestação do imposto do selo decretado por Londres. Em 1775, o Massachusetts adopta um novo selo mostrando um homem com uma espada numa mão e a Magna Carta na outra. O primeiro Congresso Continental de 1774 justifica o direito à rebelião através da Magna Carta. Desde 1915, um mural no Supremo Tribunal americano representa a mítica cena da assinatura da Magna Carta.

Há portanto duas Cartas, a histórica e a reinventada: um mito e uma ideia que passam a ser uma inspiração revolucionária, símbolo das liberdades, do primado da lei e da limitação dos poderes do Estado. É esta a Carta que hoje conta.

Mostra-o um episódio recente. Em Outubro, a Carta esteve em Pequim. Deveria ter sido exposta na prestigiada Universidade Renmin. À última hora, a mostra foi desmarcada por “razões administrativas” e transferida para a residência da embaixadora britânica. Activistas chineses protestaram, exigindo que o Presidente Xi Jinping lesse a Magna Carta, “um poderoso grito internacional contra o uso arbitrário do poder”.

Debater a Carta
A exposição da Torre do Tombo é completada por conferências sobre Os significados da Magna Carta. No dia 9, o reverendo Chris Pullin, chanceler de Hereford falará sobre a ligação da Carta à sua catedral (15h30). No dia 10, a partir das 15h, Nicholas Vincent, historiador da Magna Carta, fará uma conferência intitulada O mau rei João e os meandros da Magna Carta. A seguir, a medievalista Maria João Branco falará sobre Os tempos da Magna Carta no Portugal de Afonso II. Segue-se João Carlos Espada: Sobre o legado político da Magna Carta e a cultura política dos povos de língua inglesa.

No dia 11, a partir das 16h30, é a vez dos juristas. Pierre Zelenko, do gabinete Linklaters, falará sobre O espírito do Estado de Direito na Europa. Maria Lúcia Amaral, vice-presidente do Tribunal Constitucional, analisará A tradição do constitucionalismo português e a influência da Magna Carta. Encerrará a conferência Richard Godden, da Linklaters: A Magna Carta nos dias de hoje.

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