A linha que separa

Tenha sido por consciência política ou apenas por sede de poder, Costa fez história ao trazer de volta a linha que separa a Esquerda da Direita no espectro político português para de onde ela nunca deveria ter saído

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Enric Vives-Rubio

O governo caiu e custa a entender. Custa a entender porque é que, há pouco mais de um mês, tínhamos todos que ir às urnas se, afinal de contas, o significado da nossa "cruzinha" no papel era tão volátil. Pessoalmente, considero que os acordos devem ser cumpridos, e, consequentemente, que, em democracia, a vontade do eleitorado deve ser respeitada.

Deste lado do mundo, assisti com incredulidade ao frenesim que se criou em redor desta situação, desde o momento em que surgiu a possibilidade de uma aliança de esquerda até ao culminar da queda do executivo de Passos Coelho; um circo que deu lugar ao expressar dos mais admiravelmente desprovidos de bom senso e abjectos comentários, dos quais são exemplo o discurso misógino de Pedro Arroja relativamente às "Meninas do Bloco de Esquerda", bem como as suas analogias político-cromáticas (que me fazem sentir embaraçada pelo facto de eu, por "Terras do Tio Sam" em época de pré-campanha eleitoral, orgulhosamente ter andado a apregoar uma espécie de supremacia intelectual europeia, pela inexistência mediática de indivíduos com a mesma linha de pensamento — ou falta dele — de Donald Trump). Mas não nos esqueçamos, um pouco mais atrás no tempo, do comentário de Manuela Ferreira Leite e da sua linha imaginária que, à esquerda do PS, dividia a Direita e a Esquerda portuguesas, como se a sigla "PS" não mais fosse do que um lapso de alguém que se esqueceu de pôr lá um "D", olvidando-se a ex-ministra das finanças, ou simplesmente tentando ignorar, que o real significado da mesma é só um: Partido Socialista.

Foi este mesmo Partido Socialista que fez cair o governo, pela mão de António Costa, que, no espaço de meses, deixou de ser um Presidente de Câmara, para se converter numa figura histórica. Sim, Costa vai ficar para a história da República Portuguesa, quer queiramos ou não. Tenha sido por consciência política ou apenas por sede de poder, Costa fez história ao trazer de volta a linha que separa a Esquerda da Direita no espectro político português para de onde ela nunca deveria ter saído; por, por entre deputados de pé e sentados, ter feito daquele corredor da Assembleia da República, a divisão perfeita entre ideologias; por ter tornado o chamado "voto útil" no PS, finalmente e pela primeira vez, útil.

Sempre ouvi dizer que "depois da filha estar casada, não lhe faltam casamentos", e a Esquerda portuguesa, repartida entre tantas facções, distraída por tantos "agires" e "avançares", não soube casar-se no tempo certo. A coligação PSD-CDS ganhou as eleições; é um facto incontornável. Talvez por isso, muitos sintam que a sua vontade, na qualidade de eleitorado, não tenha sido respeitada. Mas a verdade é que, até para o casamento a lei tem estabelecida uma possibilidade de dissolução: o divórcio. Também para o governo, a Lei Constitucional Portuguesa prevê uma possibilidade de dissolução, através da aprovação, por maioria de votos de deputados em assembleia (maioria essa que foi atribuida ao conjunto dos partidos de Esquerda pela vontade do eleitorado), de uma moção de rejeição.

O governo caiu, e custa a entender. Custa a entender porque é que, se a lei o previa e era tão simples, isto não aconteceu mais cedo.

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