A idade da inocência

Guillermo del Toro atira-se ao gótico de fantasmas, num gesto sincero e requintado mesmo que pouco original.

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Guillermo del Toro continua à procura da inocência perdida do grande cinema popular

Há que tirar o chapéu a Guillermo del Toro. À conta de um único filme, O Labirinto do Fauno, e da sua recepção apoteótica, o cineasta mexicano conseguiu chegar a Hollywood e fazer o que quer – que não é forçosamente aquilo que os estúdios querem: o desvairo Godzilla-encontra-Transformers do gloriosamente retro-futurista Pacific Rim, homenagem assumida aos mestres como Ray Harryhausen, ficou longe de ser o blockbuster que muitos esperavam. Agora, Del Toro atira-se ao thriller gótico, espécie de Rebecca-vs-Meia-Luz se fosse Mario Bava ou Dario Argento por trás da câmara.

Como sempre no mexicano, tem tudo ver com as histórias que contamos e o modo como elas nos ajudam a fazer sentido do mundo que nos rodeia: a heroína de Crimson Peak, que se chama Edith (como Wharton) e Cushing (como Peter), é aspirante a escritora na Nova Iorque de finais do século XIX, e está a compôr uma história de fantasmas — antes de se ver ela própria envolvida numa, ao cair loucamente apaixonada por um baronete inglês, garboso mas sem um tostão furado, que procura financiamento para reabrir as minas de argila da família. E tudo em Crimson Peak roda precisamente à volta da história: se não estamos no conto de fadas de O Labirinto do Fauno, também aqui temos uma inocente forçada a um percurso de sofrimento por um labirinto de mentiras e segredos antes de encontrar a sua própria identidade e a sua felicidade.

É um filme milimetrica e detalhadamente construído por Del Toro, desde a minúcia das pistas lançadas pelo guião até à paciência com que tudo se desenrola e a parcimónia no uso dos efeitos visuais: sim, haverá sangue, coisa que o mexicano nunca se coibiu de fazer correr no seu cinema, mas aqui usado ao serviço do amor impossível e tresloucado que está no coração da intriga. O sangue serve aqui o mesmo fim, de purificação, exorcismo, expiação, que os grandes estilistas do giallo cristalizaram; e o modo como a fotografia de Dan Laustsen e os cenários de Tom Sanders propõem uma volúpia do simbolismo barroco, deliberadamente opressivo, com os tons primários do vermelho, do branco, do negro a dominarem a imagem, colocam Crimson Peak na linhagem do romantismo perverso dos grandes clássicos da Hammer.

Del Toro prossegue assim a sua busca de uma inocência perdida, de um grande cinema popular perdido no tempo, como se ainda fosse possível recuperá-la nestes tempos mais cínicos e apressados. Não é certo que o consiga, até porque tudo em Crimson Peak é claramente derivativo e reciclado, funcionando mais como uma homenagem do que como uma actualização. Mas o gesto é sincero e respeitoso, deferente e inteligente, e isso basta para nos conquistar. 

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