Bruno Vieira Amaral é o Prémio José Saramago

As Primeiras Coisas, o seu primeiro romance, é uma história num bairro da Margem Sul e num mundo que já não existe. "Dedico este prémio aos meus vizinhos."

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Bruno Vieira Amaral a receber o prémio esta terça-feira na Fundação José Saramago Bruno Lisita
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Bruno Vieira Amaral e Ana Paula Tavares esta terça-feira de manhã Bruno Lisita
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Bruno Vieira Amaral e Ana Paula Tavares esta terça-feira de manhã Bruno Lisita
Bruno Vieira Amaral escreveu As Primeiras Coisas inspirando-se no bairro onde cresceu: o Vale da Amoreira, na Moita
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Bruno Vieira Amaral fotografado em Dezembro de 2013 Tiago Machado

O escritor português Bruno Vieira Amaral é o vencedor do Prémio José Saramago pelo seu romance de estreia, As Primeiras Coisas. Escreveu sobre "um mundo que já tinha acabado", um bairro da Margem Sul de Lisboa que foi seu, um tipo de "comunidade extinta" - e dedicou este prémio aos seus vizinhos, do rés-do-chão ao sétimo andar, sem esquecer a situação dos presos políticos em Angola e Luaty Beirão.

O anúncio do vencedor foi feito esta terça-feira pouco depois das 12h na sede da Fundação José Saramago, em Lisboa, por Guilhermina Gomes, presidente do júri - também composto por Ana Paula Tavares, António Mega Ferreira, Nelida Piñon e Pilar del Río e que conta com, no seu Comité Executivo, Manuel Frias Martins, Nazaré Gomes dos Santos e Paula Cristina Costa. Numa terça-feira soalheira rodeada de tuk-tuk na zona ribeirinha de Lisboa, Bruno Vieira Amaral lembrou os nomes de quase todos os residentes do "bloco 63 do Bairro de Fomento à Habitação" em que cresceu. Cães incluídos, pais e filhos, avós e subchefes da polícia, e em especial aos moradores do 2.º direito, a sua morada afectiva, familiar.

Negando um traço autobiográfico directo no seu primeiro romance, inspirou-se de facto no bairro onde cresceu: o Vale da Amoreira, no concelho da Moita, distrito de Setúbal. Memórias e vidas que foram "ponto de partida e não ponto de chegada", explica ao PÚBLICO, embora, admite, tenha aproveitado "para acertar algumas contas. Comigo mesmo, com o meu passado - mas não é um livro virado para dentro, é virado para os outros". Para uma comunidade, que rima com "uma certa promiscuidade", como brinca, "entre as vidas das pessoas que se confundem" naquele espaço. 

"A humanidade inteira arde no interior deste romance e não apenas nos habitantes do bairro Amélia" onde se passa a acção de As Primeiras Coisas, destacou a escritora angolana Ana Paula Tavares, que fez o elogio do autor e da obra distinguida - publicada em 2013 pela Quetzal Editores, quando o autor tinha 35 anos (a fasquia etária máxima para os distinguidos com este galardão)Bruno Vieira Amaral criou neste seu primeiro romance o bairro Amélia, num trabalho que o jurado António Mega Ferreira descreve como "o mapa consistente de um subúrbio melancólico" e que Manuel Frias Martins considera magnético. "O efeito de real é tão forte na figuração do bairro Amélia que o leitor é literalmente puxado para dentro de uma espécie de filme da memória de todos os bairros populares de um Portugal cuja contemporaneidade se reconhece sobretudo na dimensão da sua diversidade pós-colonial", escreveu o ensaísta sobre As Primeiras Coisas.

Bruno Vieira Amaral, que nasceu em 1978, trabalhou quatro anos no seu primeiro livro. É licenciado em História pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, trabalha na editora Quetzal e é também crítico literário, tradutor e autor de Guia para 50 personagens da Ficção Portuguesa (Guerra & Paz) e de Aleluia! (Fundação Francisco Manuel dos Santos), é ainda editor-adjunto da revista LerAs Primeiras Coisas já recebeu o Prémio Literário Fernando Namora, o Prémio PEN Clube Narrativa e a distinção Livro do Ano atribuída pela revista Time Out.

Elogiam-lhe a maturidade da escrita, a inovação nas ideias e na forma - apesar de o seu primeiro leitor do rascunho do que viria a ser As Primeiras Coisas, José Rentes de Carvalho, ter sido "cáustico" quanto às notas de rodapé, uma das diferentes fontes de prosa que usa. Ou elas saíam, "ou eu não leio mais", disse-lhe o escritor. Acabariam por ficar para fazer parte de "um romance pouco convencional", nas palavras do seu autor ao PÚBLICO. Em que há "múltiplas verdades", à boleia da expressão que lhe ficou gravada da infância da "história está mal contada”, mas também se conta "uma história de reconciliação, do narrador com o bairro onde cresceu, com as pessoas que conheceu e das quais quis fugir". 

Quando regressou ao bairro Amélia (nome da sua vizinha do rés-do-chão no Bloco 63), o narrador com quem partilha o nome encontrou "a passagem do tempo", de 30, 40 anos, "nos sítios, nos lugares, nas pessoas. Que se transformaram, que morreram, que aparecem como fantasmas. É uma comunidade extinta, de um tempo que já não é bem aquele em que vivemos", reflecte depois das palmas e antes de um directo para a televisão. Este é o tempo das "comunidades virtuais" e sentiu na escrita que "estava já a fazer um pouco de arqueologia porque aquelas relações já não existem daquela forma. Esta coisa de saber o nome dos vizinhos, o que eles fazem, as pequenas histórias, foi-se perdendo. Mesmo naquele bairro". 

Não houve notas de rodapé, mas houve um preâmbulo e um epílogo ao anúncio e agradecimento do prémio com o nome do Nobel português: era preciso clamar pela liberdade. Ana Paula Tavares encetou o seu elogio a As Primeiras Coisas com um agradecimento: Pilar del Río, presidenta da Fundação Saramago e viúva do escritor português, escreveu ao Presidente angolano "pedindo a liberdade para os presos políticos", no âmbito da detenção de 15 cidadãos angolanos e da greve de fome do luso-angolano Luaty Beirão. E a escritora angolana acrescentou-lhe: "a injustiça só tem um nome e é preciso gritar agora e sempre 'Liberdade'", disse, sob aplausos da sala. Também o escritor homenageado sublinhou que "a literatura é liberdade porque não propõe uma verdade, propõe possibilidades". "Não é concebível que alguém esteja preso pelas suas ideias". 

Bruno Vieira Amaral começou a trabalhar no sucessor de As Primeiras Coisas logo após a sua publicação e está ainda a escrever o futuro livro, uma investigação sobre um homicídio, "caso real", ocorrido há cerca de 30 anos.

Esta é a nona edição do prémio, no valor de 25 mil euros, que distingue jovens autores, devendo ter uma idade não superior a 35 anos, com obra editada em língua portuguesa, no último biénio, excluindo as obras póstumas, bem como os autores que tenham já sido premiados em edições anteriores do prémio.

Atribuído pela Fundação Círculo de Leitores a cada dois anos, o Prémio José Saramago distingue jovens escritores por uma obra de ficção, romance ou novela, publicada em qualquer país da lusofonia.

Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo,  Andréa del Fuego e Ondjaki foram os premiados das edições anteriores.

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