O voto de Tito

Teremos semanas de intriga constitucional até que se constitua governo. Para depois ser derrubado. Ai, Tito, que mal me fazem as tuas visitas!

Tudo está a mudar muito depressa, responde Tito, sem que as ideias políticas se tenham ajustado à mudança. Na Europa, já ninguém se afirma democrata-cristão nem social-democrata; ou se é pelo mercado, ou se é pela solidariedade. A fronteira não é meramente ideológica, pois não se notabilizaram os filósofos do mercado e os do social mercadibilizaram um pouco o seu pensamento. O fenómeno não é só económico, é também etário, cultural, geopolítico, religioso. Tito entrou então num longo monólogo, com teses algumas aceitáveis, outras obtusas.

Claro que tudo começa e acaba na economia, começa Tito e isto é o melhor que Marx nos legou. O consenso ideológico sobre o estado social encostou-se um pouco à retórica. O consenso garantira pensões, saúde, educação, férias pagas, subsídios, apoios aos mais frágeis, desemprego mínimo. Durante décadas, com notáveis resultados na equidade, tanto no acesso como nos resultados. Os países emergentes desestabilizaram a situação, destruindo a base industrial da Europa e inundando-nos de produtos manufacturados a preços baixos. O crédito fácil subiu aos céus, a fruição substituiu a poupança. Ficámos com as redes de comércio e os serviços e nem sequer cuidámos da energia como devíamos, deixando-nos cair na dependência de terceiros. Confiámos que transportes, telecomunicações, habitação e urbanismo fariam neste século o que as obras públicas conseguiram no multiplicador de Keynes, na crise de 1929. A guerra tinha modernizado a indústria e nos vencidos reconstruido com planos e ganas. Pensávamos que os mercados sem fronteiras resolveriam tudo o resto e o que aconteceu foi a nossa invasão por economias onde as leis do trabalho estão entre parêntesis.

A questão é também cultural. Apareceram os defensores das desigualdades como aguilhão de crescimento e inovação. Dos jovens, metade curtia a vida a outra metade conquistava os lugares dos antigos patriarcas. Empresas, governos e cultura são agora ocupados pelos de trinta e quarenta anos, bem preparados, ambiciosos, activos e incultos. Esta questão etária é muito visível em Portugal, com os novos a não votarem ou a preferirem a direita e a esquerda a ser deixada para os mais velhos. Exactamente o contrário do que acontecia nos anos sessenta, quando a nossa geração teve que derrubar os gerontes que ocupavam o poder. Protestei contra esta interpretação mecânica da história, mas Tito continuava imparável.

Junta-lhe agora a componente geopolítica. Os Russos, derrotados pelo Ocidente na política, na guerra fria, na tecnologia, no espaço, no neocolonialismo e no coração dos homens e mulheres, jamais esqueceram a humilhação. E aí estão eles de novo a desestabilizar o mundo. Na Síria prometem combater o jihadismo, mas bombardeiam os nossos amigos. Claro, querem trocar armas por petróleo, interrompi. Não só, responde Tito, querem ocupar posições, aqui e ali, para serem respeitados. Ao fazerem-no com desmesurado poder militar, desequilibram as plataformas que tínhamos por estáveis, sobrepondo à nossa letargia uma retoma do seu comportamento imperial.

Pior que tudo, a componente religiosa, por ser difícil de entender. Não me basta a explicação de que a civilização árabe, longo tempo dominante e longo tempo dominada, queira erguer a cabeça à custa de decapitações e atentados suicidas. Sabemos muito pouco dos seus comportamentos e convenhamos que o que se tem passado em Israel não tem ajudado. No meio deste caos ideológico surge o Papa Francisco, com a sua ingenuidade experiente, a atrair multidões pela simplicidade e inconformismo. Um fenómeno que pode ser interrompido a todo o tempo, dada a frágil saúde do Papa e o desejo de vingança dos que ele afastou. Prouvera que se aguente!

Tito deixava-se embalar pelo globalismo analítico que tanto encanta os académicos norte-americanos e só depois o interrompi. Não te pergunto em quem votaste, mas explica-me, na tua distância de um oceano, o que se passou. Foi a solidão de Costa, como muitos dizem, foi a fraca campanha, foi a argúcia da direita aliada a mais meios, foram os media, em grande parte colonizados pelo capital, foram as benesses de última hora, foram as sondagens artificiosas para desmoralizar a esquerda? O que foi, Tito, que aconteceu?

Meu caro, um pouco de tudo. Costa tentou avançar com um pé em cada cavalo: um programa reformista e uma campanha para espremer os partidos à sua esquerda. Aconteceu que o programa era sofisticado para leitura popular e enredou-se na sua complexidade. A rapaziada do PC e do Bloco jogou na simplicidade e na imagem: uma actriz profissional, um óptimo actor de teatro popular. E resistiu a ser espremida. Claro que não conhecemos ainda os resultados. Mas oscilarão entre a maioria absoluta e a maioria relativa da coligação, podendo ainda o PS ser o partido mais votado no Parlamento. Teremos semanas de intriga constitucional até que se constitua governo. Para depois ser derrubado. Ai, Tito, que mal me fazem as tuas visitas!

Professor catedrático reformado

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