O poder das mulheres numa ópera do século XVII

La liberazione di Ruggiero dall’isola d’Alcina, de Francesca Caccini, foi a primeira ópera composta por uma mulher. Sobe hoje ao palco do Grande Auditório do CCB.

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Nos próximos meses, Van Nevel vai dirigir a mesma obra em Bruxelas, Antuérpia e Versalhes Enric Vives-Rubio

Estreada em Florença em 1625 no âmbito das sumptuosas festas organizadas pela corte dos Médici para receber o príncipe herdeiro da Polónia Vladislau Vasa, La Liberazione di Ruggiero dall’isola d’Alcina, de Francesca Caccini (1587-1640), foi a primeira ópera da história da música composta por uma mulher. Apesar de hoje ser pouco conhecida, à época foi um êxito e a música é de uma notável qualidade e variedade, sendo ilustrativa das principais inovações dos inícios do Barroco. Hoje, às 17h, será possível ouvi-la no Grande Auditório do CCB, numa versão de concerto dirigida pelo maestro belga Paul Van Nevel, que reúne o seu próprio agrupamento, Huelgas Ensemble, e dois grupos portugueses: o Ludovice Ensemble e o Officium Ensemble.

No século XXI, as mulheres continuam a estar em minoria no campo da composição e, dentro desse grupo, as que escreveram óperas são ainda menos. Que Francesca Caccini tenha recebido uma encomenda tão importante nos inícios do século XVII é aparentemente surpreendente mas um pouco menos se pensarmos que das cortes e dos conventos italianos dessa época de efervescência cultural emergiu talvez o maior número de mulheres compositoras de sempre (Madalena Casulana, Barbara Strozzi, Isabella Leonarda são apenas alguns outros exemplos). Filha de Giulio Caccini, um dos primeiros compositores de ópera, Francesca recebeu formação nas áreas do canto e da composição e aprendeu a tocar cravo, alaúde e guitarra. Em 1623 era a cantora mais bem paga da corte de Florença, onde exercia também funções de professora e compositora. A solicitação para escrever a música de La liberazione di Ruggiero dall’isola d’Alcina veio também de uma mulher, a grã-duquesa regente da Toscânia, Maria Madalena de Áustria (1589-1631), que casara em 1608 com Cosme II de Médicis e que procurava assim abrir caminho a uma união da sua filha com o príncipe polaco.

Tal não chegou a acontecer, mas Vladislau Vasa gostou tanto da ópera que a fez representar em Varsóvia em 1628. “Há muito tempo que queria fazer a ópera de Francesca Caccini, por isso quando o CCB nos pediu programas para esta temporada pensei de imediato que seria uma boa ocasião”, disse Paul Van Nevel ao Público. Acrescentando: “Já conhecia o Offcium Ensemble e o seu maestro Pedro Teixeira, ouvi-os pela primeira vez há cinco anos e fiquei impressionado com a boa técnica e a compreensão da música. O Ludovice Ensemble [dirigido por Miguel Jalôto] é novo para mim, mas tenho muito boas referências em relação às suas interpretações de música do primeiro barroco.”

Nos próximos meses, Van Nevel vai dirigir a obra em Bruxelas, Antuérpia, Versalhes e Munique (apenas com o Huelgas Ensemble) e em Janeiro a Sony fará uma gravação ao vivo. “O background psicológico e filosófico desta ópera é muito interessante”, diz o maestro. “A grã-duquesa da Toscana tinha uma personalidade muito forte e a ópera reflecte isso. As personagens mais importantes são mulheres. A personagem masculina, Ruggiero, mostra uma certa fragilidade, apesar de se tratar de um guerreiro sarraceno. Maria Madalena tinha esperança de que a ópera desse confiança ao príncipe da Polónia para casar com a sua filha. Logo no Prólogo, Neptuno louva o rio Vístula, que é um rio polaco. Há uma intenção política por trás”, explica Van Nevel. 

O libreto de Ferdinando Saracinelli inspira-se no romance épico Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto, mas integra também aspectos do Orlando Enamorado, de Matteo Boiardo, e da Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso. Melissa, a feiticeira boa, vai montada num golfinho até à ilha onde o guerreiro Ruggiero foi seduzido e enfeitiçado por Alcina, a feiticeira má, com o intuito de o libertar, assim como aos antigos amantes de Alcina entretanto transformados em plantas. A ira de Alcina faz incendiar o mar. “Pensa-se que Alcina representava os turcos, que tinham sido derrotados pelo exército polaco cristão, e que Melissa representava a própria grã-duquesa que, desta forma, procurava recuperar a sua reputação manchada por algum excesso de arrogância”, acrescenta o maestro. 

Quanto à música, Van Nevel é muito entusiasta. “Monteverdi conhecia muito bem Francesca Caccini, escreveu nas suas cartas que a ouviu cantar as suas próprias composições e que ficou muito impressionado. Nesta obra, o conceito de ópera ainda não é o da grande ópera veneziana, contendo ainda alguns aspectos da Renascença tardia. Podemos ouvir de vez em quando ecos do espírito da famosa peça La Pellegrina, de 1589.” O maestro refere que La liberazione di Ruggiero dell’isola di Alcina tem personagens muito diferentes, o que proporciona tensão e variedade dramática, um importante papel do coro e vários interlúdios instrumentais. “Tudo é conjugado num grande arco, que engloba muitos momentos de deleite, mas também de dor e tristeza. Alcina personifica o mal e ouvimos isso, Melissa é a boa feiticeira e isso é notório na música.”

Van Nevel salienta ainda a organização cuidada do ponto de vista tonal e harmónico. “As tonalidades atribuídas a Alcina e a Melissa são diferentes e permanecem as mesmas ao longo da obra. No caso de Ruggiero depende do lado que ele escolhe.” O maestro acha que se sente uma certa “sensibilidade feminina” nas criações de Francesca Caccini. “As árias não são tão pesadas como as que foram escritas mais tarde pelos compositores italianos, por vezes são muito virtuosas mas são quase sempre luminosas e encantadoras do ponto de vista melódico.” 

Paul Van Nevel fez a sua própria edição da partitura, tomando opções em relação aos instrumentos a usar na realização do baixo contínuo e como forma de caracterização de cada personagem. “Alcina é acompanhada pelas cordas, Ruggiero pelas flautas e por um trombone e Melissa por um lirone, pelo virginal e por um instrumento melódico. Podemos ver nas didascálias que foram usados imensos instrumentos. Estas decisões estão no espírito da ópera do barroco inicial, mesmo no Orfeo de Monteverdi há grande liberdade na escolha do colorido instrumental.” 

Em relação a outras intervenções possíveis deixadas em aberto pelo texto musical, Van Nevel diz que não considera necessário acrescentar muitas ornamentações vocais pois as linhas melódicas, escritas num estilo muito vivo, incluem já ornamentações suficientes. Em contrapartida, teve de seleccionar uma dança para o momento em que as damigelle devem dançar com os cavaleiros. “Está escrito ‘e agora tocam uma dança’, mas esta dança não se encontra na partitura original. Escolhi uma da mesma época que se enquadra bem no carácter do resto da obra.” Outro ponto de atracção desta ópera são os coros, incluindo logo no início o coro das divindades aquáticas que rodeiam Neptuno e depois os coros para as damas, as plantas encantadas, os monstros e os cavaleiros libertados. “Alcina encantou os seus antigos amantes e transformou-os em plantas. Perto do final estas lamentam-se e pedem a Melissa para as libertar.” Na época, todo este universo, que inclui paisagens diversas, os bosques, o mar e o fogo, foi aproveitado para efeitos cénicos espectaculares. A obra, designada no libreto como “balletto”, tinha também uma forte componente coreográfica, terminando com várias danças em honra da grã-duquesa. A última era um “balletto a cavallo”, interpretado na praça circular à frente do palácio (Villa di Poggio Imperiale).

“O próprio libreto diz algo como ‘agora vamos lá para fora dançar com os cavalos’”, refere Van Nevel. “Claro que na apresentação do CCB não iremos, ainda que Portugal tenha muito bons cavalos e uma excelente escola equestre!”

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