Visões douradas: a Festa do Cinema Chinês

Serão exibidos mais de 30 filmes na Cinemateca Portuguesa e no Cinema Ideal, em Lisboa, a partir desta quinta-feira e até 30 de Setembro.

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Se as Montanhas se Afastam, de Jia Zhang-ke é o filme de abertura do festival dr

E sai um visto Gold para o cinema da China: a partir desta quinta-feira, e até ao fim do mês, a primeira Festa do Cinema Chinês traz a dois écrans de Lisboa (os do Cinema Ideal e da Cinemateca) algumas dezenas de filmes feitos naquele país entre os anos 30 e os nossos dias.

O cinema chinês moderno não é um perfeito desconhecido em Portugal, visto que desde os anos 80 alguns dos seus autores mais representativos (de Chen Kaige ou Zhang Yimou a Jia Zhang-ke) têm sido regularmente contemplados pela distribuição portuguesa.

Ainda assim, e tratando-se de uma das cinematografias mais produtivas (e, hoje, mais poderosas) em todo o mundo, o conhecimento que se tem do cinema chinês actual é forçosamente lacunar. Mais do que lacunar, e aí sim, podemos falar dum quase perfeito desconhecido, é o conhecimento que se tem do cinema chinês clássico, feito antes, durante ou depois da Guerra Civil e da formação da República Popular da China.

A Festa aborda estas duas vertentes, com dois blocos de programação, um focado na época contemporânea (as sessões no Ideal) e outro propondo um panorama histórico (as sessões da Cinemateca) que atravessa várias décadas e inclui uma retrospectiva da obra de um dos mais importantes (e populares) cineastas chineses, Xie Jin.

O programa arranca esta quinta-feira à noite (Ideal, 21h30) com a projecção de um dos pontos altos do bloco contemporâneo. Se as Montanhas se Afastam, o último filme de Jia Zhang-ke, a chegar em breve ao circuito comercial. Se os temas de Jia permanecem os mesmos, nomeadamente a observação do conflito entre a tradição e a modernidade de uma China em mudança permanente e acelerada, é um filme que parece confirmar a crescente amplitude do seu gesto de cineasta, depois de Um Toque de Pecado.

Menos "híbrido" na relação ficção/documental do que alguns dos seus títúlos mais célebres, Se as Montanhas se Afastam tem uma respiração emocional fortíssima, próxima do melodrama (e como de costume, música e canções não faltam, incluindo escolhas aparentemente bizarras como os Pet Shop Boys), seguindo o relacionamento de um grupo de personagens, onde se inclui um miúdo chamado... Dollar, em três épocas diferentes, do final dos anos 80 à década de 2020.

 Umas das características é o jogo com o tamanho do ecrã, sucessivamente mais largo a cada época diferente - como se as personagens estivessem cada vez mais perdidas no espaço. Outro indiscutível ponto alto desta secção é a exibição de A Assassina (dia 12, 19h00, Ideal), de Hou Hsiao-Hsien, que com ele recentemente ganhou, em Cannes 2015, o prémio de melhor realização.

Hou, porventura o maior dos cineastas de Taiwan (o filme é uma co-produção com Hong Kong e a República Popular), apropria-se de um modelo de género - o filme histórico de artes marciais - para o transformar numa espécie de grande fresco, fortemente influenciado pela pintura chinesa clássica, com um rigor de composição e uma serenidade contemplativa que têm momentos de uma beleza assombrosa.

O bloco contemporâneo inclui ainda obras de cineastas conhecidos, sobretudo Tsui Hark (com A Tomada da Montanha do Tigre, um filme de acção e grande orçamento, bom exemplo da "hollywoodização" da indústria chinesa - passa dia 16 às 21h30 no Ideal) e Ann Hui, outrora conhecida como um dos nomes do "cinema de autor" de Hong Kong e aqui a trabalhar em co-produção com a República Popular, de quem veremos um melodrama histórico pleno de elementos formais pouco ortodoxos, A Era de Ouro (dia 14, 21h30, Ideal). Filmes de Lou Ye (Massagem), Peter Chan (O Sonho Americano na China) e um "sub-programa" dedicado aos estúdios do Xiaoxang Film Group completamente o bloco contemporâneo da Festa.

A secção histórica, a decorrer na Cinemateca, abre com dois filmes dos anos 30, ainda mudos, feitos em Xangai, cidade que até à formação da República Popular (no final da década de 40) foi o principal pólo da produção cinematográfica chinesa. São eles A Divina, de Wu Yonggang, de 1934 (dia 11 às 21h30, abrindo o Panorama Histórico) e Pequenos Brinquedos, de Sun Yu, de 1933 (dia 17 às 21h30).

Numa selecção que avança até aos anos 90 e ao tempo da "quinta geração", com A Terra Amarela de Chen Kaige (dia 22 às 22h00) e o Ju Dou de Zhang Yimou (dia 25 às 19h00), uma paragem obrigatória terá que ser um dos mais célebres clássicos chineses, Primavera numa Pequena Cidade, de Fei Mu, um melodrama de província feito em 1948, um ano antes do triunfo comunista na guerra civil. De destacar também, como momento forte, a retrospectiva de Xie Jin (1923-2008), homem de longa carreira (filmou entre os anos 50 e o século XXI), autor de alguns clássicos da propaganda épica chinesa, como O Destacamento Vermelho Feminino, de 1961.

Este título não está incluído no ciclo, mas estão por exemplo A Jogadora de Basquete nº5 (dia 17 às 19h00), misto de "filme de desporto" e melodrama com tónica especial nas personagens femininas (como acontece em muito da obra de Xie Jin), e o sublime As Irmãs de Palco (dia 21, 21h30), um filme de 1965, ambientado nos meios do teatro e da ópera de Xangai, que sem perder a dimensão melodramática propõe uma reflexão histórica sobre as décadas anteriores e o momento presente da vida chinesa, num procedimento que deixou óbvias marcas em cineastas de gerações futuras - tanto Chen Kaige (que o citou, implicitamente, em Adeus Minha Concubina) como Jia Zhang-ke são cineastas que podem reclamar um pouco da lição de Xie Jin.

No fim de tudo isto, o cinema chinês será um pouco menos desconhecido por cá.

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