Tsipras, o novo Lula?

Alexis Tsipras demitiu-se. Um gesto puramente político, sem outra intenção que a de reforçar a sua liderança pessoal no Syriza, livrando-se de um terço dos deputados do partido que não se renderam ao acordo pavoroso que ele achou que tinha de assinar.

Depois de um percurso tão diferente do de Hollande ou de Renzi, os três, que optaram por não cumprir os seus programas eleitorais, estão hoje submetidos ao mesmo processo de implosão política dos seus partidos, com 20%-30% dos seus deputados a se recusarem apoiar políticas com consequências económicas e sociais terríveis para os milhões de desempregados, assalariados e reformados que haviam confiado neles para romper com a austeridade de Sarkozy, Berlusconi ou Samaras. Tsipras, pelo menos, parece estar a ter mais sucesso pessoal que os seus pares francês e italiano: tendo conseguido uma vitória surpreendente e corajosa no referendo que ele próprio convocou em junho, e que deixou em estado de choque os mandantes da troika, optou por deixar de representar os 61% que nele confiaram e passar a representar os outros 39%, que votaram “Sim” para não romper com o euro e, consequentemente, aceitar todas as imposições do Eurogrupo. Essa reviravolta política que deixou boquiaberta a esquerda europeia, sobretudo porque sucedendo àquelas  semanas de tensão enorme, em que se testou na Grécia, pela primeira vez, a possibilidade concreta de fazer frente à ditadura económica da troika, parece ter conduzido à destruição do Syriza como sujeito político de representação da resistência grega às imposições – mas, curiosamente, pode levar à consolidação de Tsipras como destinatário sem alternativa do monólogo a que Dijsselbloem, Merkel e Lagarde têm sujeitado os ocupantes mais ou menos acidentais do governo grego. À derrota da direita e dos socialistas gregos nas legislativas de janeiro somou-se a sua ainda mais pesada derrota no referendo de junho. Tsipras quer aproveitar a descredibilização completa dos seus adversários à direita (salvo, talvez, alguma surpresa dos neonazis) para, como antes dele fizeram Hollande e Renzi, reorientar as suas baterias contra a esquerda – ou seja, contra os dissidentes do Syriza que acabam de constituir um novo partido (Unidade Popular), bem como, claro, os comunistas, que nunca acreditaram na vontade de resistência de Tsipras (e reconheça-se-lhes, infelizmente, que tinham razão). Seguro do “prémio de maioria” que a lei eleitoral grega concede ao partido mais votado, o que restará do Syriza pode até ter a maioria absoluta assegurada com um resultado medíocre, contando com a atomização do voto nos demais partidos, incluída a esquerda que continua a não render-se perante o acordo inconcebível que o governo grego, muito dividido, acabou por assinar.

É que não foi pouca coisa o que se assinou. Depois de o BCE e o Eurogrupo terem mostrado um pouco do que são capazes, asfixiando os bancos gregos enquanto o governo mostrou vontade firme de resistência, Tsipras achou que não havia outro remédio senão aceitar uma lista de imposições que não tem comparação sequer com o que se vinha impondo aos governos anteriores: agora não passará a vigorar simplesmente a regra de o governo grego ser obrigado a “consultar e acordar” com a troika “todas as ações que sejam relevantes para conseguir atingir os objetivos do Memorando de Entendimento”, o que (como acontece no caso português) pode ir desde a aprovação de um orçamento até detalhes como as penalizações para quem se reforma, a privatização dos transportes metropolitanos de Atenas ou as normas de acesso a profissões! Desta vez a troika foi mais longe do que nunca: o governo grego foi obrigado a aceitar que portos, aeroportos e uma infinidade de bens públicos sejam colocados à mercê de um fundo que procederá à sua gradual privatização, não podendo o governo sequer dispor soberanamente do dinheiro resultante da sua venda, o qual deve prioritariamente ser dedicado ao pagamento da dívida e respetivos juros. Além disso, o governo passa a estar impedido de introduzir “qualquer mudança na legislação sobre mercado de trabalho que signifique um regresso aos padrões de políticas passadas [past policy settings] incompatíveis com os objetivos da promoção do crescimento sustentável”! Como sublinha o exministro Varoufakis, que não quis assinar este acordo e rompeu com Tsipras, o resto da Europa deveria prestar bem atenção às consequências que decorrem desta conceção puramente ideológica. Há muito tempo que a Comissão Europeia e o BCE, que têm o poder de superintender sobre as políticas económicas dos países que fazem parte da Zona Euro, acham que a negociação e a contratação coletivas são “incompatíveis com o crescimento sustentável”. O que acontecerá a todos os contratos coletivos baseados no princípio “a trabalho igual, salário igual”? É que imposições desta natureza não se farão apenas a Estados sujeitos a estes resgates que assassinam a economia; podem ser aplicadas a qualquer Estado-membro aderente do euro!

O que é aterrador neste acordo é, por detrás do palavreado liberal, a sua evidente natureza totalitária. Nele se decreta a ilegalização da realidade social, das próprias regras do Estado de Direito, declarado incompatível com um simples modelo económico que se procura declarar irreversível. 70 anos de contratação coletiva? De direitos sociais consignados em constituições, declarações de direitos universais? De garantias irredutíveis, asseguradas a todos os cidadãos? Revogue-se tudo! E se têm valor constitucional, e, portanto, vigoram acima de qualquer acordo internacional? Reformem-se quanto antes as constituições! - e, entretanto, apliquem-se normas que, em nome da emergência e da Europa, ignorem essas constituições.

Já sabíamos que as constituições se não cumpriam nestes “estados de emergência” que nos impõem. E já sabíamos que, dentro da UE e da Eurozona, não resta um pingo de soberania dos pequenos Estados; os grandes, se não forem a Alemanha, que se cuidem de a ela obedecer, de sempre com ela imaginarem o seu futuro. Passámos a saber que o futuro se define agora – e se congela para sempre, com eleições ou sem elas.

Alguém dizia há dias que Tsipras se preparava para ser um novo Lula: depois de nele se depositarem tantas esperanças de emancipação, acabou por ser o menino prodígio dos poderosos. Dos mesmos que, contudo, nunca deixaram de sentir por ele um profundíssimo desprezo. Não sei. Sei que, como Lula, Tsipras não vai acabar bem.

Sugerir correcção
Ler 17 comentários