Não há amor como o primeiro

Uma caixa retrospectiva dos seis anos de carreira de Lloyd Cole com os Commotions confirma Rattlesnakes como uma obra-prima. Uma cápsula do tempo de uma obra que não ficou parada – porque já então estava fora de tempo

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Roberto Panucci

O que é que se faz quando se acerta no jackpot à primeira? Continua-se a jogar à espera da impossível repetição do milagre, apenas porque sim? Fica-se por apostas mais modestas e prémios igualmente mais modestos?

A Neil Clark, Lloyd Cole, Blair Cowan, Lawrence Donegan e Stephen Irvine, vulgo Lloyd Cole & The Commotions, saiu o jackpot ao primeiro disco, faz agora 31 anos. Rattlesnakes é um clássico dos anos 1980 que é também, peculiarmente, um clássico “fora de tempo”, de modos que ninguém poderia prever aquando da sua edição em 1984. Reunindo à sua volta unanimidade de crítica e público, Rattlesnakes era a ponte entre todas as influências que orbitavam o rock jovem nascido na ressaca erudita da explosão punk, quase todas oriundas do lado de lá do Atlântico.

As guitarras em carrocel de Roger McGuinn nos Byrds (ai a Rickenbacker...), o cool provocador de Lou Reed e dos Velvet Underground, o surrealismo lírico do Bob Dylan acústico e eléctrico, o questionamento existencialista de Leonard Cohen: não era preciso escolher. Estava lá tudo, só que diluído, misturado, combinado, escondido por trás de uma camada de deslumbre de “jovem universitário que descobre o mundo que lhe estava interdito ou oculto”, filtrado pelo olhar de contador de histórias de um Ray Davies que tivesse ido à faculdade.

Rattlesnakes eram só dez canções em 36 minutos – registem-se os seus títulos: Perfect Skin, Speedboat, Rattlesnakes, Down on Mission Street, Forest Fire, Charlotte Street, 2CV, Four Flights Up, Patience, Are You Ready to Be Heartbroken? Mas essas dez canções, quase todas escritas no ano que decorreu entre o verdadeiro arranque dos Commotions (originalmente um trio com Cole, Clark nas guitarras e Cowan nas teclas) e a edição do álbum, consubstanciavam um caldeirão de referências destilado alquimicamente num dos mais perfeitos álbuns de estreia do rock, moderno ou clássico, ancorado à volta de um cantor, compositor e letrista que parecia surgir perfeitamente formado do nada.

1984

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Lloyd Cole & The Commotions, 1984 Peter Anderson

Não era bem assim – nunca é. Collected Recordings 1983-1989, exaustiva caixa retrospectiva dos seis anos de existência dos Commotions, prova-o no disco de maquetas que é a sua principal novidade, onde podemos assistir à “evolução” dos temas. E estas pouco mais de quatro horas de música datam da última “época de ouro” para uma certa maneira de olhar e viver a música pop - antes do triunfo do CD, do telemóvel, do Napster, do iTunes, dos torrents, do Spotify, onde ainda era possível chegar ao sucesso através da rádio e da imprensa (e dos então emergentes telediscos).

Chegar ao sucesso não deixava por isso de ser um totoloto, como sempre foi, e como se percebe nas excelentes notas de capa escritas pelo jornalista Pete Paphides, quando Cole relembra a animosidade que se gerara entre o grupo e os companheiros de editora Orange Juice de Edwyn Collins, oriundos da mesma Glasgow. Os Commotions obtiveram instantaneamente, e mantiveram, o impacto que escapara aos Orange Juice, contudo admirados pelos novos colegas e aclamados como uma das mais importantes novas bandas do Reino Unido. Aconteceu apenas que, por razões que não eram exclusivamente musicais, Cole estava no sítio certo no momento certo. E o impacto de Rattlesnakes é, ainda hoje, incontornável.

1984 foi o ano de The Smiths e Hatful of Hollow dos Smiths, It’ll End in Tears dos This Mortal Coil, The Strange Idol’s Pattern and Other Short Stories dos Felt, Treasure dos Cocteau Twins, From Her to Eternity de Nick Cave, Café Bleu dos Style Council, Ocean Rain dos Echo & the Bunnymen, A Pagan Place dos Waterboys, Diamond Life de Sade, Dreamtime dos Cult, The Unforgettable Fire dos U2, Welcome to the Pleasuredome dos Frankie Goes to Hollywood... Mas poucos deles terão ficado identificados com 1984 como Rattlesnakes, para o bem e para o mal – o disco “mais que perfeito” que ressoa de modo indelével com o seu tempo e o seu espaço. O próprio Cole o admite, hoje: “1984 foi o nosso ano.” De tal modo que Rattlesnakes deixou no banco crédito suficiente para compensar quaisquer perdas futuras.

1985-1987

Essas perdas eram inevitáveis. Por definição, um primeiro disco só se faz uma vez. E, mesmo que estivessem à altura, os sucessores Easy Pieces (1985) e Mainstream (1987) nunca poderiam ser outro Rattlesnakes. Não o foram, e também não foram discos “felizes”. Sofreram por terem sido pensados e gravados em plena vertigem do sucesso inicial, por terem tido produtores “semi-impostos” pela editora com vista a “maximizar retorno” e “ampliar potencial”, por terem sido escritos e gravados entre digressões, compromissos, viagens... enfim, pela sua própria condição de “não-primeiros álbuns”.

Com os ritmos internos da banda desregulados pelo sucesso e pelo estatuto, estes dois álbuns foram sempre discos mal-amados pelo próprio grupo, insatisfeito por ficar “aquém” do que poderiam ter sido, por ter cedido às exigências da Polydor e terem perdido o controlo da sua direcção musical. Ouvidos agora, na sequência da obra-prima que os antecedeu, é evidente que não são melhores que Rattlesnakes (não podiam ser). Mas são, e continuam a ser, excelentes discos, “passos seguintes” que soam naturais, não-forçados, que revelam limitações e fraquezas, mas que fazem todo o sentido em contexto. Tanto Easy Pieces como Mainstream são melhores sempre que fazem avançar, ora mais timidamente ora mais determinadamente, a matriz instalada em Rattlesnakes. Quando se limitam a fazer “mais do mesmo” porque sim (como quem dá uns passos atrás para recobrar o fôlego), ou quando dão passos maiores que a perna, explicam porque é que o equilíbrio volátil entre os cinco Commotions não podia durar.

Entregue aos bons ofícios da dupla Clive Langer & Alan Winstanley (Elvis Costello, Dexy’s Midnight Runners), Easy Pieces podia limar e polir as arestas mais sixties da estreia, mas só avançava quando introduzia a dimensão gospel de Brand New Friend ou o ataque de sopros de Rich. Mainstream trazia um verniz tecnológico muito eighties, ou não tivesse aos comandos Ian Stanley dos Tears For Fears; a batida elástica de My Bag (para Cole a única canção do álbum que saiu exactamente a contento de todos) ou o lado “canção de embalar” do tema-titulo abriam portas (que Cole não se coibiria de explorar mais tarde), mas a experiência jazzística de Big Snake, com Tracey Thorn e Jon Hassell, provou ser o limite.

Para quem queria acreditar que Rattlesnakes fora um mero fogacho, Easy Pieces e Mainstream provam exactamente o contrário. Não têm outro Are You Ready to Be Heartbroken?, é verdade, mas têm Jennifer She Said, Perfect Blue, From the Hip, Lost Weekend, Grace, Cut Me Down ou Hey Rusty. Sobretudo, não são discos que justifiquem a sensação de incompletude com que o grupo ainda hoje se debate.

2015

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Lloyd Cole a solo, 1990 Martine Gaillard

Depois de deixar para trás os Commotions em 1989, andou a perseguir durante algum tempo um “sonho americano” sonoro e sofisticado, prosseguindo na senda de Mainstream (e recorrendo regularmente a Neil Clark, guitarrista e co-compositor nos Commotions e um dos melhores e mais injustamente menosprezados músicos britânicos) antes de, com Love Story (1995), assumir finalmente a herança. E nunca, nos 25 anos decorridos desde o fim dos Commotions, com direito a uma pequena digressão de reunião em 2004, Cole fez um único disco abaixo de uma média muito elevada (mesmo que, a partir de certa altura, e derivado à desintegração do que se convencionou chamar “mercado”, já só esteja praticamente a pregar aos convertidos).

Collected Recordings é um instantâneo, uma cápsula do tempo. Ao contrário da caixa de 4 CD’s do período a solo de Cole, Cleaning Out the Ashtrays, as novidades não são muitas. Aos três álbuns originais, reproduzidos na íntegra e remasterizados, anexa-se um quarto CD de lados B, remisturas e raridades que faz perguntar como algumas destas canções foram “despachadas” para tapar buracos; mas já houve dois álbuns de sessões da BBC, e os lados B e remisturas foram aparecendo como bónus em várias reedições.

A conveniência de juntar o material existente num único objecto não é dispicienda, no entanto, e a revelação pública de uma mão-cheia de maquetas no quinto CD, mais um DVD com telediscos de época (coisa que Cole, sempre pouco à vontade com estas coisas, descarta abertamente) e passagens por programas televisivos, é o maior interesse para os coleccionadores. A vantagem dos discos adicionais é perceber a dimensão do trabalho em estúdio que tornou “estas” maquetas “nestas” canções, o processo que explica que, afinal, nada disto apareceu feito como que por magia e perfeitamente formado, mas implicou tentativa e erro ao longo de múltiplas sessões de estúdio e química com produtores e técnicos de som. Compare-se a primeira versão de Are You Ready to Be Heartbroken? com a gravação final, ou como Down at the Mission se tornou em Down on Mission Street e Eat My Words levou a Charlotte Street; ouça-se Brand New Friend gravado com Paul Hardiman e depois com Langer e Winstanley, ou Jennifer She Said na versão com Chris Thomas. Afinal, o tal disco mais que perfeito que cristalizou uma “primeira vez” para músicos e ouvintes não surgiu do nada. Foi precisa toda uma vida para chegar ao primeiro amor – e não há amor como o primeiro.

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