O Ti Acácio

Acredito que as melhores homenagens se fazem em vida: os mortos não sabem ler, nem ouvir, nem falar

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Tim Wimborne/Reuters

A maior parte das pessoas nasce com família - tem pais, avós, tios, primos. Comigo, aconteceu mais ou menos ao contrário: tinha uma mãe e um tio, tão-só. O pai tornava-se numa ficção terrífica (até ser um abismo inenarrável) e os avós eram longínquos, estrangeiros. Foi o tempo quem me entregou entes familiares queridos: uma ama de uma enorme predilecção, um padrasto que um abraço podia alcançar e dois avós regressados da emigração.

Apesar de todos os Natais, épocas festivas e postais germânicos em dias de aniversário, só conheci a fundo o meu avô no verão de 2002. Passei três meses seguidinhos na aldeia serrana de Ribeira da Isna, na Beira Baixa, e ali travei conhecimento à séria com o homem que ainda hoje puxa pelo melhor de mim. Algumas das pessoas que mais admiro no mundo são-me imensamente próximas, possuo essa fortuna. O Ti Acácio é uma delas.

O Ti Acácio é homem bruto, dado às batalhas que se travam com as terras e as enxadas, saca da sua força mestra para fazer brotar do solo as melhores colheitas - colheitas essas que, não raramente, levam lisboetas a calcorrear trezentos quilómetros para degustar aquelas beldades do cultivo. Mas o Ti Acácio é também dado às gentes e às artes: arrelia-se quando os seus convidados não são tratados de acordo com o seu entender de bom anfitrião, tira bons prazeres da escrita da poesia que ainda lhe causa embaraço ao ser lida por terceiros, e é um melómano sem igual, daqueles capazes de acordar com cantos tradicionais em plena gritaria na grafonola pelas seis horas da madrugada.

O Ti Acácio é uma das pessoas mais emblemáticas da sua aldeia — ou talvez seja eu, pejado desta parcialidade natural de neto, que assim o entendo. Mas toda a gente me fala dele, com alegria no rosto e bailados na voz. O Ti Acácio é querido por todos, e agora ainda mais. O Ti Acácio anda frágil, o coração anda a pregar-lhe sustos de morte, os pulmões brincam às faltas de ar, e o Ti Acácio anda mais teimoso que nunca, porque quer viver, porque quer muito viver.

Acredito que as melhores homenagens se fazem em vida: os mortos não sabem ler, nem ouvir, nem falar. Estas letras saem-me directamente da carne e cada uma dói-me como navalhada profunda desferida sobre um órgão vital: não sei quanto mais tempo durará o meu avô, se dois dias, se duas décadas. Mas sinto saudades dele a cada dia que passa, por causa de cada hora que não passámos juntos, de cada conversa que não tivemos, de cada gargalhada que não partilhámos. Porque a partilha, quando aconteceu, foi melhor que boa. Independentemente do que os eventos vindouros reservem aos Nunes, o Ti Acácio viverá nas memórias de quem com ele existiu - e, agora, com quem leu estas palavras até à última.

Põe-te bom, Acácio. Fazes-nos falta.

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