Personagens de ficção

Se olhares para dentro, descobrirás uma peculiar e fenomenal multiplicidade de ti mesmo

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Marcos Brindicci/Reuters

O que determina que respondamos cheios de salamaleques ao nosso patrão e sejamos indiferentes ao estranho que nos aborda à saída do café? Não será apenas pela circunstância ou pela força da hierarquia – há estranhos que puxam diferentes eus de nós mesmos, há patrões que sabem arrancar-nos o sujeito simpatiquíssimo e outros exacerbam o crápula execrável que vive dentro do nosso peito. Por que razão estamos circunspectos ao escrever uma carta a alguém especial e, no mesmo espaço, minutos depois e visceralmente eufóricos, imitamos os nossos ídolos, dançando e cantando em frente ao espelho do quarto, quais rockstars do espaço privado? Parecemos água que se molda à botelha que a recebe.

O que fazem os cérebros aos corpos que habitam?

Em 1956, Erving Goffman já o havia descrito, no seu “A Representação do Eu na Vida de Todos os Dias”, explicitando que cada indivíduo (re)age de forma distinta consoante as paisagens que vai habitando. A ideia de que somos actores representando papéis diferentes, ao longo de uma vida repleta de um sem-número de encenações. Possuímos mais do que isso. Somos capazes de estender a nossa interpretação até ao limiar dos impossíveis. Todos o sabemos, e tu também.

Se olhares para dentro, descobrirás uma peculiar e fenomenal multiplicidade de ti mesmo. Talvez por isso celebremos desta forma quase cansativa a genialidade de Fernando Pessoa, não apenas pelo tesouro de sermos seus descendentes culturais, mas acima de tudo pela sua maravilhosa e sobrehumanamente descrita heteronímia. No cerne de cada um de nós, sabemos que existem múltiplas personalidades, muitas pessoas que não vivem apenas por lhes faltar um documento passado pelo nosso id que as autorize a respirar melhor o quotidiano.

Aceitando esta suposição a um nível quase literal, daremos conta de que somos uma novela, no sentido mais anglo-saxónico do termo: se assim o desejarmos, somos personagens de ficção escritas pela nossa própria (in)consciência. De acordo com cada mínima particularidade que sabemos habitar em nós, podemos construir toda uma entidade independente daquela que éramos ontem, ou ainda agora. Para dar um exemplo, agarra numa característica tua e expande-a até à sua exaustão – se mostras compaixão para com um gato, um cão ou um piriquito, experimenta fazê-lo também com o colega de trabalho que tanto te destrói o sistema nervoso.

Somos poços de contradições, paradoxos inigualáveis. Somos elefantes e micróbios em simultâneo, para roubar a ideia aos meus mui amados Chibazqui. Somos polícia e ladrão, e sabemos que um nunca conseguirá viver sem o outro. A multiplicidade enriquece: é importante descobri-la, seja com reflexões oníricas ou exposições bruscas aos elementos.

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