Um fundamentalismo à base de golos

Vivemos uma era demente no futebol português: é como se o "bullying" que se fazia nos intervalos da primária continuasse a valer até aos oitenta anos de idade

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Daniel Aguiliar/Reuters

Um dia, um idiota com a mania ilusória de que é o dirigente desportivo com maior relevância em Portugal disse-me que eu não compreendia o “fenómeno desportivo”. Ainda hoje me debato com esta questão, chegando recorrentemente à mesma conclusão dicotómica: ou sou eu que não percebo as brincadeiras de recreio e as tricas de comadres que rodeiam o futebol ou é o pseudo-dirigente que legitima a ideia bacoca de que o futebol nos autoriza a deixarmos de ser racionais e humanos. Ou, provavelmente, ambas as opções são válidas em simultâneo.

O final da época desportiva a que agora chegamos tem um sabor agridoce: se, por um lado, deixaremos de ter, durante dois meses, alguns belos espectáculos de futebol, também é verdade que nos salvamos das quezílias ridículas entre clubes rivais. Falo, claro está, dos comportamentos de dirigentes e adeptos. O futebol parece ter um condão de roubar a clareza de espírito ao mais iluminado dos mortais. Todos o sabemos: quando se fala de bola, a regra comum entre adeptos é a de guardar o cérebro numa gaveta e lançar impropérios sem regras que não sejam as que defendem o emblema cosido num bocado de pano. Já para não falar dos presidentes e outros senhores com cargos de destaque em instituições desportivas, que brincam aos comunicados, quais putos mimados que se pavoneiam por ter uma lancheira cheia de berloques: “nha-nha-nha, o meu clube é melhor que o teu, nha-nha-nha, quem te dera a ti ter uma equipa como a minha, nha-nha-nha, sei ser mais estúpido do que tu”. Kim-Jong Un teria muito a aprender com esta gente.

O mundo do futebol está à parte de tudo o resto, e não é pelos melhores motivos. O ruído à volta do que acontece dentro de quatro linhas vale zero: bate-bocas entre dirigentes, adeptos furiosos, programas televisivos onde se debate a marca das cuecas que o guarda-redes usava quando deu aquele frango escabroso, enfim. Vivemos uma era demente no futebol português: é como se o "bullying" que se fazia nos intervalos da primária continuasse a valer até aos oitenta anos de idade. Como mero exemplo, que podia ser colado com cuspo a qualquer outro emblema, o FC Porto soube ser rufia à boa moda dos clubes lusos. Há meia dúzia de dias, Pedro Pinto, pivô de informação da TVI terá anunciado uma notícia sobre o emblema nortenho e, fruto de uma constipação, acabou por dizer “futebol clube do porco”. Como seria de esperar, os supra-sumos daquela empresa arreliaram-se de imediato e, em vez de resolverem o assunto como fazem os adultos, com uma conversa civilizada, apressaram-se a lançar um comunicado engraçadinho-ofensivo de virgem ofendida, escarrando sobre a sua própria dignidade, apresentando este argumento irrefutável: “quem diz é quem é”. Cresçam, pá!

Julgo que compreendo esta atitude reptiliana de defesa de um território e de uma identidade a que se crê pertencer. Já estive do lado do adepto fanático, já vi lances em que o fervor religioso não me permitia ver para além da camisola do meu clube. Mas larguei-me disso: hoje aprecio a beleza do desporto por si só, sem ligar a cores de camisolas. Vejo com o mesmo gosto um jogo do FC Porto, do Benfica ou do Sporting (ou de outro clube qualquer, nacional ou internacional), pelo seu puro valor desportivo. E todo o adepto de futebol olha para mim como se eu fosse um extra-terrestre quando digo que adoro a modalidade mas não tenho um clube. As simpatias por um emblema foram esmorecendo, e ainda bem. Está-se melhor do lado neutro, onde se aprecia o desporto por si só, sem paixões tresloucadas à mistura.

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