Queimar um gato na fogueira

Há tradições que devem subsistir e há outras que devem ficar, para sempre, arrumadas nos livros de História

Foto
Joel Fernandes/Flickr

É ilegal desde 2008, mas a Queima do Gato voltou a acontecer. Todos se indignaram e correram a partilhar nas redes sociais o vídeo do pobre bicho apavorado com aquilo que uns selvagens lhe foram fazer. O vídeo, entretanto retirado pelos próprios responsáveis pela tradição, mostrava um gato colocado dentro de um pote de barro no topo de uma estaca à qual se chega fogo. Em seu torno, centenas de pessoas riem e aplaudem à medida que a apoteose se aproxima: o gato chamusca-se e vê-se forçado a dar um salto dali abaixo que até a ele lhe terá custado. As gargalhadas são maiores quando o animal corre, em chamas, em círculos, até achar uma nesga para se escapar. Aconteceu na transmontana freguesia de Mourão e os responsáveis pela brincadeira faziam parte do Grupo de Danças e Cantares do concelho de Vila Flor, em Bragança.

Importa questionar os fundamentos de uma acção desta magnitude. Estamos a uma longa distância de respeitar totalmente os direitos dos animais. Falar do assunto ainda desperta as paixões mais viscerais nos seres humanos, que nos levam facilmente a ambos os extremos desta questão: se há quem ache bem chegar lume a um felino, também não são raros aqueles que transferem exageradas emoções humanas aos animais. Mas mimar um cão ou um gato com doses astronómicas de beijos de língua só aborrece o bicho e oferece uma dose extra de germes ao dono. O oposto é que é grave — muito grave.

Eduardo Cintra Torres, meu antigo professor e por quem tenho uma estima imensa, desmontou a linguagem mediática deste caso, tentando dar uma certa valência histórica à tradição. O ponto de vista é indubitavelmente enriquecedor mas parece, de alguma forma, desculpar os perpetradores, dando-lhes refúgio nas acções dos seus antepassados. Há tradições que devem subsistir e há outras que devem ficar, para sempre, arrumadas nos livros de História para que, daqui por alguns séculos, a nossa descendência se divirta (e indigne) com a selvajaria pela qual a Humanidade foi, um dia, responsável.

Como Nuno Markl muito bem ressaltou no seu blogue, os habitantes de Vila Flor estão a dizer aos filhos que é aceitável fazer mal a um gato. De imediato, fez-me lembrar um antigo colega de escola que se gabava de cortar rabos a gatos quando era gaiato, ajudado pelo próprio pai. Desde então, causa-me arrepios ouvir alguém dizer que não gosta de gatos ou de outro bicho qualquer. Assusta-me também ouvir quem diz que o caso lhes é indiferente porque não aprecia este tipo de animais, como se fossem uma espécie de bibelots que se põem numa prateleira da sala.

Os habitantes de Vila Flor, esses, desculpam-se. Dizem que ali “nunca morreu nenhum gato” e que o animal torturado em 2015 “está bem”. A sobrevivência do gato não despenaliza quem o queimou e quem dele fez chacota. O argumento é semelhante ao apresentado pelos fanaticozinhos das touradas, que espetam lâminas em bichos e depois têm o descaramento de lavar dali as mãos debaixo da torneira do conceito-valor “tradição”. Uma ideia: em 2016, podemos ir a Vila Flor, prender um destes cavalheiros a uma tábua, espetar-lhe alfinetes nos dedinhos dos pés e espalhar-lhe brasas sobre as costas. No final, vamos para a televisão dizer que a pessoa “está bem” e que “nunca ninguém morreu” com aquele renascimento da Inquisição, uma tradição ainda muito celebrada por muitos mas que, para pena dos mesmos, foi tornada ilegal. Como é, algum voluntário?

Pessoas, humanizem-se.

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