Um dia luminoso

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Era uma daquelas manhãs de luz que só Lisboa tem, que a transforma numa miragem debruçada sobre o Tejo da cor do céu. Não fora imediata a decisão da Comunidade Europeia de realizar as cerimónias de adesão dos dois países ibérios nas respectivas capitais. Pretendia que fosse em Bruxelas. O ministro das Finanças que chefiou a fase final das negociações disse que não. Para quem conheceu bem Ernâni Lopes, a sua forma de dizer “não” era bastante intimidatória. “Olhe, vamos fazer da seguinte maneira: no mesmo dia, primeiro em Lisboa e depois em Madrid, porque Portugal entregou o pedido de adesão antes da Espanha”. O funcionário que o contactou levantou a questão da deslocação de 12 chefes de Governo de Lisboa para Madrid. “É simples”, disse o ministro. “Abre-se um corredor aéreo entre as duas capitais”. Ernâni contou-me os pormenores desta história quando Portugal celebrou os 20 anos. Nem vale a pena imaginar o céu cinzento de Bruxelas e o velho edifício Charlemagne.

Entrar nos Jerónimos foi o segundo deslumbramento. As velas que faziam de tecto aos claustros tornavam a pedra branca ainda mais etérea. O dia estava ganho. Oito anos depois do pedido de adesão, Portugal passava a ser “membro de pleno direito” como se dizia na altura para comprovar que o nosso destino mudara. Foram negociações muito difíceis. O Governo do bloco central, liderado por Mário Soares, teve de resolver uma crise tremenda das finanças públicas, condição fundamental para a adesão. Como quase sempre acontece, a fase final foi a mais dura. Portugal quis separar a nossa adesão da espanhola, bem mais complicada por causa da agricultura. Não conseguiu. Houve momentos de desespero, quando a vontade política dos países-membros da Comunidade oscilava ou as negociações técnicas embatiam em dossiers tão difíceis como as pescas. Se Portugal tinha mar mas não tinha pesca, se e a Espanha tinha pesca mas não tinha mar…

Mário Soares conduziu a negociação política. Em Dublin, numa célebre cimeira, conseguiu arrancar aos líderes europeus um Constat d’Accord sobre a irrevogabilidade da adesão e o seu calendário provável. Foi uma dura negociação diplomática, refere Gama ao PÚBLICO no 20º aniversário. A sua importância é fácil de perceber, desde que se conheça a forma como funciona a União Europeia. Em Lisboa, preferiu-se a ironia e a desvalorização. Nessa altura, os Velhos do Restelo não eram assim tão poucos. Em Bruxelas, uma vasta equipa de negociadores arrancava concessão a concessão. Foram precisos três dias e duas noites para fechar as negociações com Portugal e com Espanha. “Havia um ambiente de feira”, recorda um diplomata. Jaques Delors, que fora escolhido para presidir à Comissão, revelou-se um aliado fundamental. Visionário e pragmático. José Amaral, então chefe de gabinete de Ernâni e hoje administrador do BPI, recorda que os milhões de contos para o PEDIP (programa de apoio à indústria portuguesa) para compensar outras perdas foram escritos num corredor numa folha A4. O método e a boa vontade do chefe da diplomacia italiana, Giulio Andreotti, que presidia ao Conselho de Ministros, foram igualmente decisivos. Não deixava ninguém dormir, vencia pelo cansaço.

Nos Jerónimos, foi a consagração de um objectivo estratégico fundamental. Mas foi também o alívio. O Governo presidido por Soares tinha os dias contados. A Europa ainda não saíra da euro-esclerose que a dominou nos anos 80, consequência dos choques petrolíferos. Ninguém previa os efeitos da perestroika, embora Gorbatchov acabasse de entrar no Kremlin para “descongelar” a História. Sem a pressão da Guerra Fria, o factor geopolítico que determinava o alargamento às novas democracias ibéricas deixaria de ter a mesma força. A Europa ocidental queria travar a influência soviética através dos partidos comunistas em países como a França ou a Itália. Por isso, Ernâni Lopes (de quem todos temos saudades) podia dizer, vinte anos depois: “Quando não tinha mais argumentos, tinha sempre uma tábua de salvação, que se chamava Álvaro Cunhal.”

Belém demitiu o Governo de Soares no dia seguinte. Cavaco Silva tinha conquistado inesperadamente a liderança do PSD, com um programa de ruptura. Ruptura com o “bloco central”, ruptura com a escolha do candidato presidencial, ruptura com o resultado das negociações, que ameaçava reabrir. Repetiu a ameaça na cerimónia dos Jerónimos, perante os jornalistas. Não reabriu. Não queria o PSD associado à adesão. Rui Machete, que substituíra Mota Pinto depois da sua morte como vice-primeiro-ministro, conseguiu impor-se e foi o segundo subscritor do Tratado. Ernâni e Jaime Gama tinham o seu lugar assegurado.

Discursando perante os novos parceiros europeus, culminando a longa batalha europeia pela qual lutara sempre, Mário Soares disse que, em cinco anos, o país estaria irreconhecível. A enxurrada dos fundos, as regras comunitárias disciplinadoras, a nova vivência europeia garantiram que assim fosse. O corredor aéreo funcionou na perfeição. A cerimónia do Palácio Real, presidida por Felipe Gonzalez, foi menos luminosa. A ETA estava no auge e a segurança prevalecia sobre tudo o resto. A primeira grande transformação de Portugal europeu foi a integração ibérica. Económica e política.

Há 30 anos, este foi um dia cheio de esperança. Foi assim que o vivi, reportando os acontecimentos para o Expresso. Inesquecível. Quando as negociações ficaram concluídas, no dia 29 de Março, os jornalistas espanhóis celebraram com a sua delegação. Os portugueses não. Não é uma crítica, mas, como escreveu Unamuno, os portugueses choram sempre, mesmo que não saibam por que razão.

 

 

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