Elogio da loucura por Foxygen e Dan Deacon na despedida do NOS Primavera Sound

Depois de Patti Smith, o último dia espelhou a diversidade que é a identidade do festival: destacaram-se os regressados Ride, o festim electrónico de Dan Deacon e os surpreendentes Foxygen. A edição 2015 foi a mais concorrida de sempre: 77 mil espectadores.

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Os Foxygen mostraram da forma mais eloquentemente tresloucada como fazer de um concerto um verdadeiro happening
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O concerto das Ex Hex foi exactamente o que esperávamos e ainda bem
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A banda é uma explosão de energia e humor, uma criação elaborada com fervor a partir dos estilhaços da cultura rock
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Os britânicos Ride deram um concerto imaculado mas de fruição reservada aos convertidos
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A banda, uma das mais emblemáticas do shoegaze, reuniu-se dezanove passados desde a edição do último álbum de originais
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Dan Deacon quebrou barreiras entre o palco e audiência e improvisou um concurso de dança
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Os históricos alemães Einstürzende Neubauten
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Os Underworld apresentaram uma a uma as canções desse documento histórico chamado “dubnobasswithmyheadman”
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A obrigatória “Born slippy” fechou o concerto

Os dois primeiros dias de NOS Primavera Sound, apesar de FKA Twigs, Antony & The Johnsons, Belle & Sebastian ou Run The Jewels, tiveram destaque óbvio.

Todos os olhares se concentraram em Patti Smith, autora de dois concertos, quinta e sexta-feira. O último dia, sábado, foi, por sua vez, espelho fiel da diversidade que é a imagem de marca do festival. Na despedida, não houve um nome que se destacasse claramente.

Houve a surpresa Foxygen, deliciosamente desconcertante, e houve os Underworld, exactamente como anunciado: interpretaram na íntegra “dubnobasswithmyheadman”, clássico de 1994, e tocaram no final a obrigatória “Born slippy”. Houve a festa de Dan Deacon, mestre-de-cerimónias pouco cerimonioso nos seus calções vermelhos; e o resumo de carreira dos regressados Ride, em concerto imaculado mas de fruição reservada aos convertidos. Fez-se, em resumo, a celebração do ontem e do hoje da música popular urbana, marca-de-água do festival chegado ao Parque da Cidade, no Porto, em 2012.

Quando, ao aproximar-se o fim do concerto dos galeses Underworld, o público começou a dividir-se entre os que continuariam noite fora, aproveitando por exemplo para conhecer novidades dos Health, cujo aguardado segundo álbum, Death Magic, está a chegar, e aquele que, depois de dançar tudo o que conseguira, se encaminha para as saídas procurando descanso do frenesim dos últimos dias, já era oficial: o NOS Primavera Sound regressará em 2016, entre os dias 9 e 11 de Junho.

Também já fora divulgado que esta edição entra para a história do festival como a mais concorrida: passaram pelo Parque da Cidade 77 mil pessoas, vindas de 40 países. A verdade é que já temos o NOS Primavera Sound como componente imprescindível do roteiro de festivais portugueses. Habituámo-nos à relva e à brisa marítima, continuamos a elogiar a organização do espaço e o design que o acompanha, sóbrio, elegante e não-intrusivo, e constatamos, ano após ano, que os critérios de programação são fiéis ao espírito original do festival nascido em Barcelona em 2001. Ou seja, esteticamente ecléctico – electrónica, hip hop, folk, punk, rock’n’roll, de tudo se ouve por aqui – e, sem fundamentalismos do gosto, atento ao que fervilha nas margens do mediatismo de massas. 2015 foi, nesse sentido, um bom ano para o NOS Primavera Sound. Como comprovámos no dia de despedida.

Tudo começou com um homem da casa, Manel Cruz, a mostrar as suas canções, as dos Pluto ou de “Foge, Foge Bandido”, nenhuma dos Ornatos Violeta, em novas roupagens. Público devoto frente ao palco, outro público repousando no conforto relvado do cansaço dos longos dias anteriores. Perante todos, Manel Cruz mostrou como fazer de uma canção palco de surrealismo bem equilibrado entre pop descarnada e melodias arrancadas a uma tradição popular que sentimos próxima, nossa. Na “aldeia” dele chamam-lhe “louco”, como disse numa das últimas canções, mas foi benévola e bem-vinda aquela loucura de trocar as voltas ao repertório.

Estávamos a meio da tarde, o vento dos dias anteriores serenara e ficava apenas o céu azul e o calor do Verão que se anuncia. Tempo ideal para a prática do festival, como diria um comentador futebolístico transplantado para o ofício da análise musical. Hora e meia depois, esse mesmo comentador lutaria para encontrar as palavras certas para descrever o que, naquele mesmo palco, o Super Bock, um dos dois principais, tinha perante si.

Baxter Dury, filho de Ian, já ensaiara bons passos de dança discretamente histriónica, passe o paradoxo, enfiado num fato de bom corte, e Thurston Moore, que este domingo desce do Porto para actuar em Lisboa, na Galeria Zé dos Bois, comprovara que o rock que ajudou a cristalizar nos Sonic Youth tem uma identidade a que não consegue, e não quer, escapar. E isso, pelo que ouvimos do quarteto que lidera, onde encontramos o baterista Steve Shelley, companheiro de longa data na banda de “Daydream Nation”, nada tem de negativo: as canções prolongam-se e a matéria sónica molda-se, ora lentamente, ora em turbilhões incandescentes, e acolhemos o novo, as músicas de um álbum em gestação, como se fossem clássicos que conhecemos há muito. Já víramos portanto Manel Cruz, Baxter Dury ou Thurston Moore quando aquilo aconteceu.

Palco dentro irromperam três “go go dancers” que são também vocalistas bem afinadas. Palco dentro aparecerá um homem furacão chamado Sam France que há-de trocar de camisa sabe-se lá quantas vezes (as necessárias para que o suor não o encharque demasiado), que cantará como pregador profano, qual Nick Cave, que exibirá o torso como Iggy Pop, que dançará, andrógino, como um Mick Jagger encharcado em anfetaminas. Por perto, bem mais discreto, rodeado de teclados e ocasionalmente de guitarra a tiracolo, está Jonathan Rado, a outra metade da dupla Foxygen que, no NOS Primavera Sound, mostrou da forma mais eloquentemente tresloucada como fazer de um concerto um verdadeiro happening. A banda que nos desiludiu com o desequilibrado …And Star Power, o terceiro álbum de originais, é uma bomba em palco. Literalmente: uma explosão de energia e humor, uma criação elaborada com fervor a partir dos estilhaços da cultura rock que sentem tão próxima. Tudo é feito ao contrário do aconselhado pelas regras. As canções desaguam umas nas outras em frenesim e musical, versão punk, e o hit mais conhecido, “San Francisco”, só será ouvido no sistema de som durante uma abrupta saída de palco. A meio do concerto anunciam a última canção, que estará longe de ser a última, mas nessa altura, já estamos sintonizados com este universo em que a soul, o garage, os Stones ou o glam de Marc Bolan surgem como pontos cardeais de uma geografia que nunca desvendaremos totalmente – essa, de resto, é a sua magia.

O concerto dos Foxygen não é exactamente um concerto, é melhor que isso: Sam France lançar-se-á nos braços do público, logo ao início, emborcará uma quantidade generosa de sabe-se lá o quê de uma garrafa, cantará para e com as três vocalistas de palco, irritar-se-á com o guitarrista e o baixista que, em momento nonsense, fingem jogar uma cartada de póquer enquanto o concerto decorre. Nada daquilo é o que se espera de um concerto rock’n’roll, mas ali, no concerto dos Foxygen, tivemos direito a tudo o que o rock’n’roll deve ser: um embate inspirador com uma força incontrolável. Quem os viu, não esquecerá certamente a experiência. Concerto da noite (quando o sol ainda brilhava no céu). À medida que as horas avançaram teríamos direito a momentos nos antípodas daquela loucura: as canções muito perfeitinhas do trovador bem comportado Damian Rice, a música desse epítome do indie moderno chamado Death Cab For Cutie (que arrastaram consigo uma verdadeira multidão que se sentou na encosta, que se encostou às grades, que cantou canção após canção com serena devoção).

À medida que a noite avançou, deparámo-nos exactamente com aquilo que esperávamos e soube muito bem (falamos dos Ride, falamos das Ex Hex de Mary Timony), e reencontrámos um espírito divinamente louco a tomar conta das operações num dos palcos principais (Dan Deacon). Este último tratou de quebrar barreiras entre o palco e audiência e, com o apoio de um baterista infernizado, pediu que se abrisse uma clareira entre o público para improvisar um concurso de dança. Depois, conseguiu que se formasse um corredor para mais dança (des)controlada, e, de uma simpatia cativante, conversou o mais que pode entre as explosões de electrónica rugosa e frenética, densa mas libertadora como em rave inspirada. Foi um prazer receber o homem de Baltimore e ver o ar surpreendido com que descobriu a quantidade inusitada de gente que, entre o público, carregava consigo vasos com diversas plantas – não fazemos ideia de onde vieram, mas a situação bizarra foi adequada àquilo que foi o concerto. Quanto às Ex Hex, não nos proporcionaram esse tipo de surpresas.

A banda que se estreou o ano passado com Rips é como que homenagem ao rock enquanto máquina sonhadora: são o punk em tangente perfeita com a pop mais orelhuda, são o cintilar do glam (com lantejoulas a condizer) a iluminar as descargas eléctricas da guitarrista extraordinária que é Mary Timony. O concerto das Ex Hex na tenda gigante que forma o palco Pitchfork foi exactamente o que esperávamos e ainda bem (não queríamos nada mais e nada menos que isso mesmo). Tal como o dos Ride.

A banda britânica, uma das mais emblemáticas do shoegaze, reuniu-se este ano, 19 passados desde a edição do último álbum de originais, e a única dúvida era perceber se as guitarras continuariam capazes dos crescendos e do estrépito decibélico de outrora, se as vozes de Andy Bell e Mark Gardener continuariam a harmonizar com abandono, se a secção rítmica se mantinha tão oleada como nos recordávamos. Não foi preciso mais que chegar ao final da épica “Leave them all behind”, a primeira do concerto, para perceber que sim. Com excepção do chapéu que agora cobre a cabeça de Mark Gardener, tudo estava exactamente como nos recordávamos. Banda de culto em Portugal, os Ride sofreram com o abandono gradual de público, que deixou frente ao palco NOS apenas os conhecedores. Dançando nos ombros de amigos fortes e pacientes, fechando os olhos para acompanhar os momentos mais envolventes ou abrindo-os bem abertos para ter a certeza que eram mesmo os Ride a tocar Chrome Waves ou Drive blind aquilo que viam e ouviam, esses foram privilegiados. O tempo fez bem àquela música, encontro feliz entre o prazer na corrosão sónica e o apreço pela ideia escorreita de canção. Num ápice, 19 anos se apagaram. 2015 não estranha os Ride.

Quando os ouvimos, já tínhamos desesperado no aguardado concerto dos históricos alemães Einstürzende Neubauten, minado pelo som que invadia o palco ATP, o dos Death Cab For Cutie que actuavam à mesma hora. Quando os Ride se despediram, Dan Deacon estaria a preparar os calções para iniciar a festa. O público dispersava-se pelos restantes palcos e recantos do Parque da Cidade. Juntar-se-ia novamente quando os dois Underworld subiram ao palco para apresentar o álbum que marcou a década de 1990. A pista de dança estava preparada. Uma a uma apresentaram-se as canções desse documento histórico chamado dubnobasswithmyheadman. Quem preferisse o embate com o presente ao reencontro com o passado, nada teria a temer. Tinha à mesma hora os Ought, como que versão mais atinada dos Parquet Courts, e a catarse noise de Pharmakon. Vários tempos e vários sons em simultâneo, disponíveis para as barbas grisalhas, para os corpos jovens, para as crianças de auscultadores protectores nos ouvidos, para os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses ou alemães que preenchem o NOS Primavera Sound. A edição 2015 terminou agora. 2016 está mesmo a chegar.    

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