Défice abaixo dos 3% já foi alcançado, não uma mas sete vezes

Ao contrário do que tem dito o primeiro-ministro, o défice já ficou abaixo dos 3% do PIB. Mas depois subiu, retroactivamente...

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Passos insiste que desequilíbrio das contas inferior a 3% é inédito Nuno Ferreira Santos

No seu discurso em Guimarães, num jantar da coligação PSD/CDS, o primeiro-ministro prometeu anteontem “um défice inferior a 3% do PIB”. “É a primeira vez”, desde que existe democracia e moeda única, garantiu. Guterres, Durão Barroso e Sócrates conseguiram défices abaixo dos 3%. O problema é que a forma de cálculo mudou, retroactivamente. O futuro costuma aumentar os défices.

Logo no início da sua intervenção, aos quatro minutos, Passos apresentou uma ideia que mereceu palmas da assistência: “Conseguimos também que o país pudesse ter em 2015, é isso que vamos conseguir, um défice inferior a 3% do PIB. É a primeira vez desde que nós integrámos a moeda única, desde que existe a moeda única, que Portugal vai ter menos de 3% de défice. Mas deixem-me dizer-vos, é também a primeira vez que vamos ter défice abaixo de 3% desde que temos um Portugal democrático.”

Deixemos de lado as dúvidas que a própria Comissão Europeia já expressou sobre o objectivo para o défice de 2015 e o "conseguimos" por este ser, nesta altura, apenas uma previsão - ainda com o ano a chegar a meio. Não é verdade que Portugal tenha défices sucessivos acima dos 3% desde 1974, ou sequer “desde que existe moeda única”. Na realidade, a moeda única existe desde 1 de Janeiro de 1999 (enquanto moeda escritural) e passou a ser transaccionada, com notas e moedas, desde Janeiro de 2002. Passos pode estar a referir-se a uma ou a outra destas formas de existência, mas a sua frase continua a ser contestável. Em 1999, 2000, 2007 e 2008, o défice esteve abaixo desse limite, segundo a série de dados "Estado: despesas efectivas, receitas efectivas e défice/excedente em % do PIB" publicado pela Pordata. Também em 2002 e 2003 não houve nenhum alerta de Bruxelas para o incumprimento dessa meta. Ainda que a série do Eurostat, hoje, apresente valores diferentes, e mais altos.

Há uma subtileza: a forma de calcular o défice mudou há menos de um ano. O novo Sistema Europeu de Contas (SEC 2010), em vigor desde Setembro de 2014, alterou, retroactivamente, o valor destes défices que, até então, estavam abaixo dos 3%. O único que escapou foi o de 2007, o que chega para questionar a afirmação do primeiro-ministro. Os outros foram revistos em alta, quer pela inclusão de despesas que antes não contavam para este campeonato, quer pela exclusão forçada de "receitas extraordinárias" que à época eram permitidas.

Na inauguração da Feira Internacional de Agropecuária e Artesanato de Estremoz, em 29 de Abril, Passos dissera o mesmo: "Pela primeira vez desde os últimos 15 anos, nós iremos sair de um défice excessivo, quer dizer, registaremos um défice inferior a 3%."

Os procedimentos por "défice excessivo", naturalmente, só foram abertos quando os números, à data em vigor, o exigiram. Guterres, Barroso e Sócrates conseguiram evitar, ou sair, de procedimentos desse tipo. Porque, na altura em que foram contabilizadas, as contas públicas portuguesas não apresentavam um saldo negativo acima do valor de referência do Tratado de Maastricht. No site da Pordata há seis ocorrências de anos em que o défice esteve abaixo dos 3%. A primeira data do ano em que foi implantada a democracia, em 1974, as restantes cinco aconteceram nos últimos 20 anos.

Se Passos conseguir manter o de 2015 abaixo desse limiar, não será a primeira vez. Nada garante, como vimos, que esse seja um êxito duradouro. À luz do próximo Sistema Europeu de Contas tudo o que estamos hoje a discutir pode tornar-se obsoleto. E outro primeiro-ministro pode vir a reivindicar o que praticamente todos os seus antecessores já tentaram.

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