Trabalho escravo à minha mesa

Quantas vezes terei comido camarão tailandês? Reformulo: quantas vezes terei comprado camarão produzido por trabalho escravo? Muitas, imagino

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Jose Luis Saavedra/Reuters

Há poucas semanas vi um documentário sobre a indústria do marisco na Tailândia que resulta de uma investigação feita pelo jornal britânico "The Guardian" ao longo de seis meses. São menos de 20 minutos para digerir uma realidade tão assustadora.

O esquema de tráfico humano e do trabalho escravo é até bastante simples e, claro, altamente rentável. Os homens, a maioria imigrantes — 90%, segundo apurou o jornal — de países como Myanmar ou Cambodja são os mais susceptíveis a serem interceptados nas malhas. Vinham à procura de uma vida melhor, em fábricas ou empresas de construção tailandesas, mas acabaram por ser encarcerados e vendidos de barco em barco como animais, como andrajos.

Sob um clima de violência extrema, fazem turnos de trabalho de 20 horas consecutivas, tomam anfetaminas para não dormir, não vêem a terra há um ano, dois, mais. São pessoas que não pertencem a ninguém nem a coisa nenhuma. São espancados, torturados e mortos. Os que ousam enfrentar o capitão são esquartejados, mas sem recurso a objectos cortantes. Isso não. Vamos atar-lhes as pernas e os braços a quatro barcos diferentes e esperar que se desmembrem — os restantes colegas ficam a assistir, não vão lembrar-se de tentar o mesmo. São pessoas, mas valem menos que lixo — inclusive que o próprio “trash fish” que pescam e que é depois transformado em farinha para alimentar o camarão.

A Tailândia é o maior exportador do mundo de camarão, uma indústria avaliada em 5,1 mil milhões de euros. Para sermos mais exactos, saem do país cerca de 50 mil toneladas de camarão por ano, sendo que 10% desse número é produzido pela Charoen Pokphand Foods (CP Foods), vendido em cadeias como o Carrefour, a Walmart, a Tesco, a Costco ou a Aldi e comprado por nós.

Quantas vezes terei comido camarão tailandês? Reformulo: quantas vezes terei comprado camarão produzido por trabalho escravo? Muitas, imagino. É uma imagem absolutamente aterradora. De repente, estou sentada à mesa, em casa ou num restaurante, a deliciar-me com uns camarões que têm o peso de uma vida. Não posso mudar o que comi. Posso, isso sim, procurar saber de onde vem o camarão que vejo congelado nas arcas frigoríficas do supermercado, ou que está cozido e só me exigem que o descasque, ou que não tem rótulo com a informação de origem, mas devia.

Ninguém me impede de perguntar ou incita a que compre. Essa é a minha liberdade e é também a minha obrigação — senão de me insurgir, pelo menos de rejeitar.

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