Democracia, liberdade e derrogação

O que ocorre neste momento na Europa, e em Portugal, é, em grande parte, a corrupção do princípio democrático.

As tensões entre a democracia e a liberdade sempre existiram.

Enquanto governo do povo e para o povo, a democracia assenta no princípio da legitimidade soberana do povo. Se o governo não deriva da vontade do povo ou se as suas ações não visam os seus interesses, as ações governativas tornar-se-ão ilegítimas, ou antidemocráticas. O que se joga na democracia é um princípio de soberania. Quem é o soberano? Se o povo é o soberano (a montante e a jusante da determinação) o regime é democrático.

De modo mais simples e noutra galáxia moral, o que ocorre neste momento na Europa, e em Portugal, é, em grande parte, a corrupção do princípio democrático. Quem governa não governa para o povo e muitas vezes o seu poder nem sequer deriva do povo. Governa para os grandes interesses financeiros e para os pequenos interesses particulares, incluindo os partidários, fechados ao princípio da soberania popular.               

Acontece que, por outro lado, não há garantias que o povo vise sempre o bem. O povo pode visar o mal e escolher o mal. A instabilidade e a liquidez de toda a escolha popular pode ter resultados catastróficos para o próprio povo ou para partes minoritárias do povo, cuja dignidade é indeclinável. O exemplo mais conhecido é o da eleição democrática de Hitler e do regime nazi, na Alemanha dos anos trinta.

Uma das formas, até ver a melhor, de compatibilizar o princípio da soberania popular com a salvaguarda de princípios fundamentais que são tidos como estando, inclusive, acima da soberania popular, é o de submeter as escolhas populares ao primado da lei, especialmente ao primado da lei constitucional e de outras leis tidas como estruturantes do, justamente, chamado estado de direito… democrático. Isto é, a lei encarna um conjunto de ideias e princípios que estabelece limites à própria vontade popular.

Bem entendido, a “força” e a estabilidade da lei pode bem servir para derrogar, de facto, a vontade popular. Uma ditadura pode funcionar dentro da lei. É, hoje, por exemplo, entre muitos outros casos, o caso da China. Embora também noutra galáxia moral, pode ser isso que está a ocorrer na Europa e em Portugal. Que a lei tenha sido capturada por poderes fácticos, que a usam despudoradamente contra o povo, a maioria e o bem comum.

O facto de termos eleições a horas certas (elas próprias reguladas pela lei) é, em teoria, a fórmula certa para equilibrar a liquidez da vontade democrática do povo e a fixação de princípios constitucionais que estabeleçam a salvaguarda da dignidade humana. Acontece que as eleições, o modo de expressão da vontade popular, são, demasiadas vezes, sobredeterminadas pelo dinheiro e por outros poderes fácticos que desestruturam e eliminam a autenticidade da expressão de vontade popular. Talvez seja isso que esteja hoje a acontecer, em Portugal e na democracia ocidental.

Por mim, parece-me bem que quer a democracia quer a lei estão ser, entre nós, gravemente derrogadas. Por um lado assiste-se a uma despudorada, porque à frente de toda a gente, derrogação da vontade popular, com governos eleitos que governam ostensivamente contra quem os elegeu; por outro, assiste-se a uma despudorada derrogação da própria lei, à vista de toda a gente, desconstitucionalizando a vida política e social, eliminando-se o poder soberano dos tribunais (que lhes vem indiretamente do ovo e diretamente da lei constitucional) e inflacionando o valor dos contratos privados e dos interesses económicos relativamente aos próprios contratos democráticos.

Que fazer? Quando um barco adorna para um lado, devemos colocar-nos no outro. Se há uma crescente derrogação da vontade popular soberana, devemos bater-nos mais intensamente por ela; se a lei perde crescentemente o seu valor devemos tornar-nos, bater-nos por isso, crescentemente positivas e rigoristas legais.

Se o povo nos dá autoridade, a lei salva-nos. Batermo-nos novamente e intensamente por um e por outra é o único caminho da tradição democrática e republicana que nos vem desde as revoluções americana e francesa. Sem este combate, renovado e reforçado, a divisa liberdade, igualdade e fraternidade não é senão uma treta retórica.

Professor do ensino secundário, Doutor em Filosofia

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