Polémica da prova de amamentação muda protocolo no hospital e chega a Bruxelas

Ordem dos Médicos do Norte está a investigar uma queixa de outra enfermeira. Administração do Hospital de Santo António admite rever protocolo, mas diz que foi a enfermeira que se queixa que escolheu a "expressão mamária".

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Há um terceiro caso que envolve também uma enfermeira AFP

A denúncia de duas enfermeiras de dois hospitais públicos do Norte, que dizem ter sido obrigadas a comprovar que estão a amamentar os seus filhos retirando leite na presença de médicos de saúde ocupacional, está a provocar polémica. A administração do Hospital de Santo António, uma das unidades visadas, já anunciou que, "em função deste escândalo", vai alterar o protocolo para comprovar a amamentação. Enquanto espera por mais esclarecimentos, a Ordem dos Médicos faz saber que existe mais uma denúncia e admite estar perante um procedimento "ilegal e abusivo". Entretanto, o caso chegou esta segunda-feira à Comissão Europeia através de questões colocadas por uma deputada do PCP.

As duas enfermeiras – uma do hospital de Santo António e outra do Hospital de S. João, no Porto – afirmaram ao PÚBLICO ter tido que comprovar que estavam a amamentar “espremendo as mamas” em consultas de saúde ocupacional. Explicaram que aceitaram submeter-se a tal metodologia para não perder o direito à redução horária de até duas horas de trabalho por dia prevista na lei.

Esta segunda-feira, a Ordem dos Médicos do Norte adiantou que recebeu em Janeiro uma queixa do mesmo teor de uma outra enfermeira de um hospital da região (que prefere não nomear) e que de imediato a enviou para o conselho disciplinar para que se pronunciasse.

O problema começou por ser levantado por médicas, explicou o presidente do Conselho Regional do Norte da OM, Miguel Guimarães. Em Outubro, a OM já tinha tentado averiguar o que se estava a passar, na sequência de queixas de várias médicas feitas num fórum na Internet, mas estas diziam só estar a ser convocadas para consultas de saúde ocupacional onde teriam de provar que estavam a amamentar.  Na altura, como elas se recusaram a ir a estas consultas e “nada aconteceu”, a questão não mereceu mais averiguações.

Até que a OM foi confrontada com um aviso publicado num boletim informativo do Centro Hospitalar do Porto (a que pertence o hospital de Santo António) que referia expressamente que “todas as funcionárias que, decorridos os doze meses de aleitação, continuem a amamentar, serão convocadas para uma consulta de saúde ocupacional”. “A não comparência à consulta implicará a imediata suspensão da licença”, frisava o aviso.

Em parecer jurídico, a OM considerou então que a mera obrigatoriedade de sujeição a uma consulta de saúde ocupacional representava “uma ofensa grave aos direitos das trabalhadoras lactantes que o Código do Trabalho visou proteger”. E aconselhava as interessadas a apresentar queixa à Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego (CITE). Depois disso, recebeu a referida queixa da enfermeira, que foi  enviada ao Conselho Disciplinar do Norte, o qual já ouviu a médica e a enfermeira em causa, mas ainda não há uma decisão.

Na sequência da notícia do PÚBLICO, a OM decidiu agora perguntar, por escrito, à directora clínica do Hospital de S. João se existe um protocolo. A confirmar-se, diz Miguel Guimarães, isto é “ilegal e abusivo” e os médicos que aceitarem fazer tal prova podem ser alvo de processo disciplinar. Ainda que perceba a motivação – o S. João explicou que decidiu avançar com a metodologia porque se percebeu que havia muitas fraudes – Miguel Guimarães acentua que estará a ser posta em causa a lei .

Também esta segunda-feira, a deputada do PCP no Parlamento Europeu Inês Zuber questionou a Comissão Europeia sobre se tem conhecimento de prática idêntica em outros Estados-membros e qual a situação em cada um destes países relativamente aos direitos das mulheres que estão a amamentar.

Problema das fraudes está nos atestados?
Rosalvo Almeida, que presidiu à Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte, recorda que já em 2010 esta entidade fez um parecer sobre o eventual “abuso de benefício” dos “atestados médicos relativos à amamentação para além de um ano de idade da criança”.

A comissão frisou que a emissão deste tipo de atestado – que segundo o Código do Trabalho tem que ser apresentado ao fim de um ano mas depois implica a renovação com frequência, uma vez que as declarações médicas só têm a validade de um mês – é uma exigência legal. Do ponto de vista ético, porém, os médicos, nas situações em que seja preciso atestar sobre a amamentação que se prolonga para além do primeiro ano de vida, “apenas o devem fazer se estiverem efectivamente convencidos de que essa amamentação é uma realidade”.  

Rosalvo Almeida considera agora que o tipo de metodologia usada pelos hospitais é ilícita e que quem deve ser inquirido e, eventualmente, punido é o médico que passa o atestado. “Obrigar a provar que está a dar de mamar é um abuso do ponto de vista deontológico”, defende o médico, que durante anos foi membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Um entendimento que é não partilhado pelos responsáveis do Hospital de Santo António. Sollari Allegro, presidente do conselho de administração,  confirmou o caso denunciado pela enfermeira mas garantiu que lhe terão sido dadas mais duas alternativas. "Uma era a expressão mamária, a segunda era um esvaziamento com bomba e a terceira era o doseamento da prolactina", afirmou Solllari Allegro citado pela Rádio Renascença. Foi a enfermeira que se queixou que escolheu a "expressão mamária", assevera.

A medida surgiu para combater situações fraudulentas, algumas prolongadas por quatro anos, segundo disse.  "É evidente que é desagradável, mas também não é muito honesto estar a aproveitar de uma facilidade da lei e estar três e quatro anos [em horário reduzido]", argumentou. Seja como for, o administrador, que também é médico, adiantou que vai pedir a revisão deste “protocolo”, segundo a RR,  admitindo-se que passe apenas a ser proposto às mulheres o teste de prolactina.

Já o Hospital de S. João não avançou mais explicações, para além das que já tinham sido adiantadas ao PÚBLICO. Aqui, a metodologia também envolve três tipos de despistagem, mas exclui os testes de prolactina, por considerar que não são fiáveis. Assim, o procedimento é efectuado após os dois anos de amamentação e o método escolhido consiste na “expressão mamilar, o uso de bomba extractora de leite ou a amamentação da criança sob observação de uma enfermeira, em ambiente recatado”. O procedimento é facultativo, podendo a profissional recusar-se, assegura, sem explicar o que sucede a quem disser que não.

A presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego, Joana Gíria, sublinha que ainda não recebeu qualquer queixa de profissionais de saúde. “Dito desta forma, parece uma coisa repugnante”, reconhece em declarações ao PÚBLICO. Mas nota que é preciso primeiro haver uma denúncia e investigá-la, “fazendo o contraditório”, para formular uma opinião sustentada. “É uma questão demasiado ampla para se responder de uma forma ligeira”, frisa.

As mulheres, lembra também, podem pedir informações e  apresentar queixas, garantindo a CITE que a sua identidade não será divulgada. No caso de a redução de horário estar a ser usada indevidamente, frisa ainda, poderá haver “um abuso de Direito”. Ainda segundo Joana Gíria, citada pela agência Lusa, nenhuma mulher é obrigada a fazer prova de evidência de leite, para ter direito à amamentação, explicando que é apenas obrigatório a entrega de um atestado médico.

Notícia alterada para esclarecer que os atestados médicos, após um ano da amamentação, devem ser apresentados mensalmente, porque a sua validade é de 30 dias

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