Tolentino de Nóbrega, um herói do jornalismo

A seriedade e a resiliência do Tolentino ficarão para sempre como exemplo de um herói do jornalismo.

Em 1998, fui à Madeira fazer uma reportagem sobre os 20 anos de poder de Alberto João Jardim. Telefonei antecipadamente ao Tolentino. Quando cheguei, ele facilitou-me todos os contactos que lhe tinha pedido e combinámos o trabalho.

Em 1998, fui à Madeira fazer uma reportagem sobre os 20 anos de poder de Alberto João Jardim. Telefonei antecipadamente ao Tolentino. Quando cheguei, ele facilitou-me todos os contactos que lhe tinha pedido e combinámos o trabalho.

Conhecia o Tolentino há vários anos, tínhamos integrado a mesma direcção do Sindicato dos Jornalistas na década anterior, mas nunca tinha estado com ele no terreno, no seu terreno, a Madeira. Mal cheguei, apercebi-me de como ele, na qualidade de jornalista, era um personagem central da realidade madeirense. No ponto nevrálgico da política local que então era o Café Apolo, no centro do Funchal, os alertas chegavam-lhe de todos os lados e não necessariamente mais da oposição do que do PSD. “Ó Tolentino, você já sabe o que aconteceu ontem?…” , “Ó Tolentino, tenho uma coisa importante para lhe contar…”, “Ó Tolentino, há aí uma bronca dos diabos…”. E o Tolentino, com a sua bonomia, ouvia toda a gente, sorrindo, para depois partir para o terreno, averiguar, ir aos locais certos, cruzar fontes, investigar, enfim construir a notícia com o grau de certeza que se exige a um verdadeiro profissional, sobretudo a actuar em terreno minado, como era o caso dele.


A oposição, obviamente, rejubilava com as denúncias que o Tolentino fazia dos abusos do poder jardinista, até porque, perante a sua própria fragilidade, percebia que tinha mais impacto uma qualquer notícia do Tolentino incómoda para Jardim do que dezenas de discursos que ela pudesse produzir. Mas alguns sociais-democratas, aparentemente incomodados com a prepotência de Alberto João, não rejubilavam menos. Por isso, ambos – oposição e franjas do poder – faziam do PÚBLICO e do seu correspondente um veículo privilegiado para revelar ao país quão profundo era o défice democrático na Madeira. O célebre padre Martins, do Machico, evocando acontecimentos de 1978, quando os seus conterrâneos se rebelaram contra Jardim e tiveram como resposta uma ocupação militar, desabafou comigo: “Oh, se naquela altura o PÚBLICO existisse e o Tolentino escrevesse lá, tudo teria sido diferente. Estávamos completamente isolados, não havia telemóveis, não havia Internet, poucos telefones havia, só havia a televisão oficial, eles faziam o que queriam”.

Mas voltemos à reportagem. Ouvida toda a oposição, impunha-se ouvir Alberto João Jardim. Disse ao Tolentino que lhe ia pedir uma entrevista e que compreenderia perfeitamente se ele não quisesse vir comigo. Afinal, o clima entre os dois devia ser de cortar à faca e nada obrigava o Tolentino a expor-se a eventuais humilhações. A resposta surpreendeu-me: “Não há problema, não te preocupes, marco a entrevista e vamos lá os dois”. Por um lado, fiquei contente: a entrevista só ganharia porque ninguém melhor do que o Tolentino para colocar a Jardim as perguntas incómodas. Por outro lado, fiquei apreensivo porque não estava disponível para assistir a faltas de respeito (ou algo ainda pior) sem reacção. Ainda perguntei ao Tolentino se estava seguro da sua decisão e a resposta foi firme. Decidi então, de mim para mim, que se houvesse alguma atitude desrespeitosa para com o Tolentino durante a entrevista, me levantaria de imediato, agarraria no gravador e sairia pela porta mais próxima. Uma reportagem sobre os 20 anos de poder de Alberto João Jardim sem ouvir o próprio seria sempre criticável, mas se tal sucedesse e se as causas fossem explicadas no jornal, os leitores certamente compreenderiam.

No dia marcado, entramos os três na Quinta Vigia – nós os dois e o Luís Ramos, repórter fotográfico – para sermos recebidos numa varanda soalheira por um Alberto João Jardim exuberante, afável, que começou por nos oferecer whisky e charutos. Optámos por água e as palavras trocadas antes da entrevista foram de absoluta cortesia e descontracção. O meu nervosismo dissipou-se de imediato, substituído por uma certa estranheza. Afinal, ali estava, à minha frente, o homem que já tinha insultado inúmeras vezes em público o Tolentino e o jornal, já tinha proclamado as mais disparatadas teorias sobre o jornalismo por nós praticado – incluindo a mais patusca de todas, segundo a qual o PÚBLICO o atacava porque ele nunca tinha autorizado a Sonae a abrir um Continente na Madeira… –, já tinha “revelado” as mais delirantes conspirações, e agora esse homem agia com total urbanidade e consideração pelos interlocutores. Um cenário de Dr. Jekyll e Mr. Hide com um cheirinho tropical.

A entrevista correu bem. Jardim não fugiu a qualquer questão. A sua obsessão de então era o poder guterrista instalado em Lisboa, perante o qual ele defendia a sua política social como mais eficaz. “Estou à esquerda desta gente” foi a manchete escolhida pelo Nuno Pacheco no domingo seguinte. Quando saímos da Quinta Vigia, fiquei a pensar na duplicidade de comportamento de Alberto João. A afabilidade com que tratou o Tolentino não era só hipocrisia. No fundo, ele admirava-o porque, afinal, o Tolentino era das poucas pessoas (e dos pouquíssimos jornalistas) que na Madeira faziam o seu trabalho sem se intimidarem com as prepotências, ameaças e cantos de sereia de que era permanentemente alvo. Sim, porque houve prepotências, muitas, ameaças várias e cantos de sereia, poucos, ao longo dos 25 anos em que o Tolentino reportou da Madeira para o PÚBLICO. A tudo isso o Tolentino resistiu estoicamente, heroicamente. Nunca se deixou intimidar, nem nunca se deixou tentar pelas benesses com que a rede tentacular de favores jardinistas tentou por vezes aprisioná-lo. Recusou sempre privilégios, favores, jeitinhos, promiscuidades, em nome e em abono da sua independência jornalística. Não vivia torturado por isso. Era a sua forma de ser. Vertical, honrada, honesta, independente, ferozmente independente como deve ser qualquer jornalista que se preze.

Não conheço nenhum outro jornalista português que, em democracia, tenha exercido a profissão em condições tão difíceis. Ninguém exerceu durante décadas a função de watchdog, de vigilância do poder, atribuída aos media, tão bem como o Tolentino. É uma ironia trágica, de facto, como lembrou o Vicente, que ele tenha morrido justamente no momento em que a Madeira se liberta da autocracia jardinista. Agora que se espera que o défice democrático madeirense se dissipe, resta-nos a certeza de que ninguém deu maior contributo para tal do que o Tolentino, na exacta medida em que ele se bateu pela liberdade de informação como uma pedra basilar da democracia.

No Expresso, o José Pedro Castanheira sugeriu já que lhe fosse atribuída a Ordem da Liberdade. É mais do que merecida, porque a forma como ele exerceu a profissão de jornalista em condições tao estóicas faz dele um combatente pela liberdade, sem sombra de dúvida. Mas com comenda ou sem comenda, a seriedade e a resiliência do Tolentino ficarão para sempre como exemplo de um herói do jornalismo.

Jornalista

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