Uma Batida para agitar os Konono Nº1

Congoleses que inventaram uma nova música nos anos 1960, os Konono Nº1, encontram Batida, obra de um luso-angolano criador de pontes transcontinentais. Vamos ver em palco o que andam a preparar. Só pode correr bem.

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A família Konono Nº1, agora aumentada com Pedro Coquenão Miguel Manso
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Pedro Coquenão e Augustin Makuntina Mawangu (à direita) são os pivôs de mais uma ponte transcontinental MIGUEL MANSO

“Antes de tudo o mais, eu chamo-me Augustin Makuntina Mawangu, filho de Mawangu Mingiedi. Venho do Congo, de Kinshasa. É preciso contar a história a partir daqui." A primeira pergunta acabava de ser feita e sabíamos perfeitamente quem era o homem sentado à nossa frente, o músico que hoje lidera os Konono Nº1. De olhos cansados pelo pouco que dormiu desde que aterrou em Lisboa, casaco vestido sobre a camisa porque o frio europeu é mesmo frio quando comparado com as temperaturas congolesas (disso falará uma das novas canções do grupo), Augustin ouviu a pergunta e, antes da resposta, explicou quem é e de onde vem.

É preciso contar a história a partir dali para chegarmos aqui, ao momento em que entrevistamos Augustin Makuntina Mawangu, líder em digressão dos Konono Nº1, e Pedro Coquenão, o luso-angolano criador de Batida, inspirada ponte musical transcontinental criadora dos justamente celebrados Batida e Dois. Coquenão acolhe a banda em Portugal para lhe produzir um novo álbum. Os trabalhos começaram esta semana no estúdio-garagem de Batida e termos o privilégio de ouvir em primeira mão o que resultará da colaboração. Esta sexta, Konono Nº1 e Batida sobem ao palco do Lux, em Lisboa (22h30). Sábado, serão ambos protagonistas do concerto que, no Teatro Académico de Gil Vicente, assinala o 29.º aniversário da Rádio Universitária de Coimbra (21h30).

É dia 2 de Março, hora de jantar. Estamos no salão principal da Casa Independente, no Largo do Intendente, em Lisboa. Noutra divisão, os restantes Konono e Vincent Kenis, produtor deles desde a sua descoberta no Ocidente, em 2005, sentam-se à volta de uma mesa para jantar. Connosco, o cansado e aparentemente circunspecto Augustin, o manager do grupo, Michel Winter, e o Pedro Coquenão, de discurso rápido e entusiasmo habitualmente transbordante. Nada disto (as viagens, as entrevistas, os largos em cidades longe de casa) é novo para Augustin.

Desde que em 2005 passou a acompanhar a banda que o seu pai fundara em Kinshasa em 1966, já viveu muito mundo. Esteve em toda a Europa, nos Estados Unidos, no Japão. Tocou e gravou com Björk, colaborou com Herbie Hancock ou com os vanguardistas jazz rock The Ex. Estreitou laços com os conterrâneos Kasai Allstars e recebeu o apreço do mundo indie através da releitura da sua música por nomes como Animal Collective, Andrew Bird, Juana Molina ou Deerhoof, no álbum Tradi-Mods vs Rockers. Apesar de tudo isso, a música revelada em 2005 com o álbum Congotronics Vol.1 mantém-se praticamente intocada na sua essência. É a música criada há 40 anos por Mawangu Mingiedi, pai de Augustin.

Tocador de likembé, pequeno lamelofone de reduzida projecção sonora, lutava sem sucesso para que o seu grupo pudesse ouvir-se entre a azáfama de uma grande metrópole como Kinshasa. A solução que encontrou foi um golpe de génio. Amplificou os likembé usando ímanes retirados aos motores de velhos carros e fios de cobre, e ligou-os a megafones de grandes bocas, que amplificavam o som electrificado, distorcido, dos likembé. Utilizando plástico, borracha e o mais que estivesse à mão nos despojos da cidade, os companheiros de banda criaram instrumentos de percussão. O resultado era algo nunca antes ouvido. Era, é, a Orchestre Tout  Puissant Likembé Konono Nº1. Nunca a música tradicional dos bazombo, etnia originária de uma área da República Popular do Congo nas proximidades da fronteira angolana, soara assim: ritmo furioso como base e as melodias circulares do likembé a moverem-se num frenesim hipnótico que prenunciava, sem o saber, naturalmente, a música de dança electrónica que o Ocidente descobriria décadas depois.

Esqueçam-se quaisquer ideias nefastas de purismo ou a imagem da “música do mundo” intocada desde há gerações imemoriais. Konono Nº1 é tudo menos isso. Pedro Coquenão: “É uma banda que vem de África e que toca música tradicional, mas com uma certa aspereza que a torna muito interessante. Toca em zonas do teu cérebro que outro tipo de world-music mais redondinha não consegue. Se olhares para o público num concerto de Konono encontras desde os miúdos novos que gostam de música indie a velhos hippies. Há muito esta ideia pré-concebida da África como realidade étnica, com as pessoas a dançarem música tradicional nas ruas. Os Konono, por causa dos amplificadores e de um lado mais urbano, puxam as coisas noutra direcção. Estão abertos ao mundo e não é imediatamente identificável a quem se dirigem." Mais à frente, acrescentará: “É muito inspirador e revolucionário saber que o pai do Augustin achou óbvio em determinado ponto da sua vida que devia electrificar o likembé. A tradição tem de ser renovada a toda a hora. É resultado de uma pessoa ser uma pessoa, não de reproduzir comportamentos que lhe foram passados por quem veio antes."

 

Tempos diferentes

No final do século XX, os Konono Nº1 estavam inactivos, culpa das dificuldades quotidianas impostas à população pelo regime de Mobutu e da guerra civil que assolara o país. Todos os membros originais, com excepção de Mawangu Mingiedi, haviam morrido. Em 2005, o renascimento era total. Saíra Congotronics Vol. 1, primeiro álbum da banda, e o entusiasmo foi generalizado – punks e ravers, fãs de world music e fãs de rock todos juntos no elogio à ética do-it-yourself e à carga libertadora daquela orquestra de likembé. Os concertos, como já testemunhámos um par de vezes em Portugal, são uma torrente de som irresistível, um crescendo que inebria os sentidos enquanto o esqueleto responde como pode ao ataque da percussão, à voz de Pauline Mbuka Nsiala, a vocalista principal, e às polifonias criadas pelos likembés. E isto em concertos de uma hora e meia, duas horas de duração, ao contrário do habitual no Congo, onde tocam principalmente em acontecimentos rituais, como casamentos ou funerais, em que as actuações podem prolongar-se por seis horas.

Da edição do álbum de estreia até hoje, não pararam. Sucederam-se digressões, surgiu o supracitado álbum de releitura da sua música, Tradi-Mods vs Rockers, a que se seguiu uma digressão conjunta com alguns dos nomes nele constantes. Assume Crash Position, o segundo álbum creditado aos Konono Nº1 chegou em 2010. “O maior presente que recebi foi a estrada percorrida. Ver a nossa música partir para o estrangeiro e ser conhecida tão longe”, diz Augustin. “A continuidade do nosso grupo envolve o trabalho com outros músicos que se cruzam com Konono. Queremos continuar a levar a nossa música por todo o mundo, mas queremos também encontrar a música dos outros. Isso é tão importante quanto manter a pureza da nossa música." Uma pureza que, assinale-se, não se encontra em mais lado nenhum.

“Há muitos músicos que tocam o likembé no Congo, mas para encontrar esta música é preciso conhecer-nos. Somos o número um!”, acentua. Há quem “pirateie” os Konono, expressão que Augustin utiliza para definir as bandas que os tentam imitar para capitalizar no seu sucesso, mas “nunca serão os Konono”: “isso não será verdade nunca." Konono Nº1 é, essencialmente, uma história de família. “Eu toco em casa, os meus filhos tocam em casa. Se eu ficar cansado um dia, serei substituído por um deles, tal como eu substituí o meu pai” – o octagenário Mawangu Mikendi ainda é o construtor dos likembés usados pelo grupo, mas já não os acompanha em digressão. Ver os Konono Nº1 prosseguirem depois de si é o desejo de Augustin. “Mas a vida é demasiado longa. Não sei o que ela será, não sei isso acontecerá." Tem esperança: “Os meus miúdos pequenos em casa tocam o likembé."

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Pedro Coquenão: “É uma banda que vem de África e que toca música tradicional, mas com uma certa aspereza que a torna muito interessante MIGUEL MANSO

O presente encontra-os em Lisboa. Marc Hollander, o fundador da belga Crammed Discs, editora dos Konono Nº1, viu o concerto de Batida no último Womex e achou que havia algo a ganhar em juntá-la aos congoleses. Augustin viu Pedro Coquenão com a sua Batida em Genk e assentiu. Em Março de 2015, depois de uma correria de quase 30 datas, aterraram em Lisboa.

A noite corre calma no Largo do Intendente. No interior da Casa Independente, ouvem-se ao longe as conversas à mesa. Ouvimos aqui bem perto Pedro Coquenão e Augustin Makuntina Mawangu. O primeiro explica que, enquanto co-produtor do novo álbum, interessa-lhe principalmente “ouvir os esqueletos das novas canções e acrescentar o que seja sugerido com naturalidade, sem impor nada". Para já, pô-los a dar uso à bateria electrónica que utiliza habitualmente em Batida.

Augustin, por sua vez, fala dos temas que os Konono Nº1 abordarão no álbum. E ri-se com o sorriso mais aberto que lhe vimos. Saibamos então que uma canção fala sobre o casaco que é obrigado a vestir na Europa para não morrer de frio. “Se não tiver um, morro de frio num instante. Morrerão todos: as raparigas, as mulheres mais velhas, os avós." Outra, sobre a necessidade de, quando o trabalho não abunda, um homem ter de fazer o que puder para assegurar o ganha pão – e imagina Marc, o patrão da Crammed, a vender peixe em Genebra. Uma terceira dirige-se aos Estados Unidos e à Austrália. “Não temos familiares lá, mas querem ver-nos nesses países. Cantamos que basta esperarem um pouco que havemos de lá chegar." Solta uma gargalhada e conta que, da última vez que visitou a América, alguém lhe disse ter esperado dez anos para ver os Konono Nº1. “Fico feliz quando ouço isso."

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Em Portugal, caso alguém os espere há tanto, não terá de esperar mais. Hoje e amanhã, dose dupla. Konono Nº1 e Batida. Por agora, poucas certezas. É certo que ouviremos sete novas canções dos Konono Nº1. É provável que ouçamos também os congoleses interpretarem alguns temas do luso-angolano. Entre o dia da entrevista e o do concerto muito poderá ter acontecido. Esperam-se convidados que, naquele dia, ainda não tinham rosto definido. Certamente mais acontecerá. “Tenho muita tralha na garagem e vou tentar empurrar alguma para eles”, diz Coquenão. Depois, conclui: “Tenho a certeza de que as coisas não serão iguais ao que eram antes, mas não forçaremos a mudança." Parece mais que adequado ao espírito da banda com que Batida partilhará o palco.

Minutos antes, perguntávamos a Augustin sobre a primeira gravação conhecida dos Konono Nº1, registada em 1978 nas ruas de Kinshasa para a rádio pública francesa. Disse ele: “Eu venho de um sítio, o papá de outro. As pessoas são diferentes e os tempos são diferentes." Mas os Konono Nº1 são, em essência, os mesmos. Batida será a diferença nessa magnífica constância.

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