A matéria dos sonhos: a película fotográfica

Durante uma projecção de duas horas, se se somar o tempo total de interrupções entre "frames", a sala terá estado cerca de meia hora às escuras

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Lisandro M. Enrique / Flickr

A indústria de Hollywood, conhecida como a “fábrica dos sonhos”, veio salvar um dos ícones fundamentais da cultura cinematográfica: a película. É animador saber que, recentemente, a Kodak, outrora uma ubíqua marca que se viu forçada a fechar portas em 2012 devido ao avanço do digital, conseguiu contratos com os maiores estúdios americanos. A película poderá estar de volta e os dias de andarmos a comprar gato por lebre poderão findar.

Não sou um purista tecnológico. Não nutro particular apreço por movimentos nostálgicos que fetichizam tecnologias datadas, embora respeite integralmente tal impulso “museológico”. Regra geral, os equipamentos de consumo de entretenimento (não será o mesmo com os equipamentos de produção), por mais culturalmente relevantes e revolucionários que tenham sido, são substituídos por outros que, pelo menos, cumprem as mesmas funcionalidades. Mas o caso da película fotográfica é diferente.

O cinema é uma ilusão. E não é só do ponto de vista poético que é permitido dizê-lo. Com efeito, o cinema (que encontra a sua raiz etimológica na palavra grega “kinema”, que significa “movimento”), apenas é possível devido à incapacidade humana de dar conta dos intervalos na sucessão de imagens fixas a partir de determinada velocidade. Durante uma projecção de duas horas, se se somar o tempo total de interrupções entre "frames", a sala terá estado cerca de meia hora às escuras.

A diferença entre o protocolo digital e o analógico é que o primeiro pressupõe uma velocidade de 25 "frames" por segundo enquanto que o segundo requer apenas 24. Isto não só faz com que um filme tenha entre mais 5 a 10 minutos na sala do que em formato DVD ou na televisão, como implica também que haja uma espécie de cadência encantatória da imagem em movimento na sala escura. Mais ainda, a película e a sua textura visual são as matérias-primas que representam a sétima arte no seu contexto mais tradicional. No fundo, todas as outras alternativas são sucedâneos da origem para a transportar para ambiente doméstico.

Entende-se que numa economia “cost effective” o digital seja apelativo — uma cópia digital de um filme para projecção pode chegar a custar até cerca de metade de uma cópia em película e não se deteriora da mesma forma, o que significa que serão necessárias menos cópias no total. Porém, essa circunstância não se traduz no preço dos bilhetes. O “Lobo de Wall Street” não foi exibido a preço de saldo!

As grandes companhias de distribuição e exibição, através dos seus mastodônticos complexos "multiplex", primeiro levaram a alma das salas de cinema, decorando tudo com plástico e tectos falsos de esferovite (até as pipocas sabem a material reciclado). Depois, chegaram ao ponto de construírem salas de escala caseira e, finalmente, tentaram trocar a impressão fotográfica pelo código binário. Adulteraram a natureza de um serviço até à sua essência e continuaram a cobrar preços de antigamente. Venha daí a película, que paguei bilhete inteiro e quero tudo a que tenho direito.

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